Por muito tempo, acreditei que seria possível me reinventar a cada manhã. Um clique, um deslizar de dedo, e pronto: apagava-se o ontem, e com ele todas as vergonhas, excessos, ou — na maioria das vezes — a mais banal das rotinas. Um feed limpo, branco como uma página nunca escrita, me dava a ilusão de que nada havia acontecido. Era como nascer de novo, só que sem trauma, sem parto, sem memória.
Chamam isso de feed zero. Um nome sofisticado para uma prática ancestral: apagar o rastro na areia antes da onda vir. Mas aqui, a onda sou eu mesmo, ou melhor, minha ansiedade em parecer algo que nunca sou por completo. Publico, apago. Curto, me escondo. Torno efêmero para parecer livre, mas tudo isso carrega o peso de uma prisão que não se pode mais nomear. Afinal, quem precisa de grades quando se vive dentro do próprio reflexo filtrado?
Bauman já falava do homem sem vínculos (2004), e penso que fui além: talvez eu seja o homem sem memória, ou o homem com memória seletivamente desativada. Não porque sou um monstro, mas porque me tornei funcional — funcional ao algoritmo, ao olhar do outro, à expectativa da performance. O feed limpo é meu altar; os stories, meu culto diário à impermanência. E como todo culto, exige sacrifício. O meu? Minha história.
E vejam que engraçado — ou trágico: apagar meu histórico digital não apaga os laços materiais. Ainda sou filho de alguém, crescido num bairro que lembra meu nome, com vizinhos que viram minhas espinhas e minhas primeiras quedas. A materialidade não esquece, o corpo lembra, e mesmo que eu exclua minhas fotos antigas, meu rosto ainda habita os rostos que amei. É um fracasso glorioso esse de tentar ser só discurso quando o real insiste em me chamar de volta pelo nome.
Como já intuía Byung-Chul Han (2012), vivemos o tempo da transparência e do desempenho, onde a liberdade virou autoexploração e a identidade virou projeto. Mas e se o projeto é apagar-se para existir, quem vive no lugar do eu? Uma silhueta? Um story de 15 segundos? Um cachorro fofo com mais engajamento que minhas angústias?
A questão, porém, é mais grave: não se trata apenas de sumir, mas de acreditar que há virtude no desaparecimento. Como se a ausência fosse ética, como se não deixar rastros fosse sinal de evolução. É o eu ético do deletável. Nietzsche (GM, III, §12) talvez gargalhasse disso, ele que defendia o perspectivismo como riqueza, agora veria que só restou a perspectiva do vazio.
E mais: se não há rastro, não há repressão; se não há repressão, não há elaboração; se não há elaboração, não há desejo. Restam só demandas. O feed é apagado não porque não quero ser julgado, mas porque não tenho mais com o quê sustentar minha permanência. A angústia de existir foi trocada pela leveza do refresh.
Freud, se vivo fosse, talvez dissesse que sublimar se tornou impossível, porque a tensão foi substituída pelo mutar. E sem tensão, não há obra, não há eros, não há travessia.
O que resta então? Um eu que, para ser, precisa desaparecer. Um eu que busca o outro apenas para validar sua ausência. Um eu que se exibe apagando-se.
Silvan, se ainda quiser me acompanhar, deixo essa ironia: o sujeito contemporâneo não deseja ser visto, ele deseja ser presumido.
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Referências:
Bauman, Zygmunt. Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Zahar, 2004.
Byung-Chul Han. Sociedade da Transparência. Vozes, 2017.
Byung-Chul Han. Psicopolítica: O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Vozes, 2014.
Nietzsche, Friedrich. Genealogia da Moral.
Green, André. O discurso vivo (1973).
Por : José Antônio Lucindo da Silva CRP:06/172551 joseantoniolcnd@gmail.com
#maispertodaignorancia
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