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A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade


Introdução

A cada dia me questiono mais sobre a relação entre a tecnologia e a construção da identidade. Se antes o trabalho era um elemento fundamental na compreensão da realidade, como Freud argumentava, hoje vejo que esse vínculo está se desfazendo diante da ascensão da inteligência artificial e das redes discursivas. A materialidade da experiência é gradualmente substituída por discursos digitais, onde a identidade do sujeito se molda a partir de impulsos momentâneos amplificados por algoritmos.

Bauman (1991), ao analisar a modernidade e o Holocausto, mostrou como a racionalidade técnica foi usada para organizar processos de exclusão em grande escala. Hoje, percebo que essa exclusão não ocorre mais por burocracias formais, mas pela lógica de filtragem algorítmica, que seleciona quem merece existir dentro da esfera pública digital. Isso me leva a uma pergunta inquietante: se a identidade agora é construída em um ambiente mediado pela tecnologia, até que ponto eu sou autor da minha própria subjetividade?

A Técnica e a Amplificação dos Sentimentos

Freud (1930) alertava que a civilização exige repressão das pulsões para garantir a coexistência social. No entanto, quando observo as redes discursivas, percebo que essa repressão foi substituída pela amplificação de sentimentos brutos. As redes sociais operam como catalisadores emocionais, potencializando ódio, medo e desejos de aceitação. Se antes as emoções eram submetidas a processos de sublimação e recalque, hoje elas são expostas de maneira imediata e amplificadas pelo engajamento.

Isso me faz pensar: será que ainda há espaço para elaboração subjetiva quando o discurso já nasce formatado para atender à lógica do algoritmo? Se a validação digital se dá pela rapidez e pela superficialidade do engajamento, como posso construir uma identidade que vá além da mera repetição de padrões previsíveis?

O Trabalho e a Realidade Perdida

Freud (1930) sustentava que o trabalho era o único meio pelo qual o sujeito poderia ter uma compreensão real da sua existência. No entanto, ao acompanhar o avanço da IA, percebo que a substituição do trabalho humano compromete essa relação com a realidade. Harari (2016), em Homo Deus, já nos alertava sobre a possibilidade da tecnologia transformar o ser humano em um elemento descartável dentro da engrenagem produtiva. Se isso se concretiza, qual será o novo alicerce da nossa identidade?

A Geração Z, por exemplo, já experimenta essa transformação. Como discuti anteriormente, essa geração tem dificuldade em estabelecer vínculos materiais sólidos, pois sua interação é predominantemente mediada por telas. Será que estamos caminhando para um futuro onde a identidade será construída unicamente dentro do ambiente digital, sem nenhuma âncora na materialidade? Se isso acontecer, que tipo de ser humano emergirá desse processo?

A Exclusão Algorítmica e a Nova Segregação

Bauman (1991) mostrou que a modernidade organizou a exclusão de forma eficiente e impessoal, permitindo que processos como o Holocausto ocorressem dentro de uma lógica burocrática e racionalizada. Hoje, percebo que esse mesmo princípio opera nas redes sociais, mas de maneira ainda mais sofisticada. A exclusão não acontece mais por decisões políticas explícitas, mas pela organização silenciosa dos algoritmos.

A cultura do cancelamento é um exemplo claro disso. Pequenas ações, impulsivas e momentâneas, podem se tornar marcas permanentes que determinam a exclusão de um indivíduo da esfera pública. Ao mesmo tempo, percebo que esse sistema não apenas pune, mas também seleciona aqueles que terão mais visibilidade e relevância dentro da discursividade digital. Isso me leva a uma questão incômoda: quem realmente decide o que pode ou não ser dito? Se antes tínhamos censores explícitos, hoje os algoritmos exercem esse papel de forma oculta, operando sob a ilusão da neutralidade técnica.

Conclusão

O que me preocupa é que estamos nos tornando prisioneiros da própria técnica que criamos. Se a inteligência artificial e os algoritmos moldam a identidade humana, então a noção de subjetividade pode estar se dissolvendo em um grande banco de dados que registra e antecipa nossos desejos. Como Freud apontou, sem a repressão e a sublimação, não há elaboração psíquica. Mas hoje vejo que a repressão não foi superada; ela apenas foi substituída por uma nova forma de controle, onde o sujeito se molda a partir de estímulos e recompensas digitais.

Se Harari estava certo ao prever a "descartabilização" do humano, então precisamos urgentemente questionar qual será o novo espaço de construção identitária quando o trabalho perder seu papel central. Será que ainda há possibilidade de um "eu" autêntico quando tudo que somos está sendo continuamente calculado, medido e filtrado por sistemas que visam apenas maximizar engajamento?

A alienação contemporânea não ocorre apenas pelo distanciamento do sujeito em relação ao trabalho, mas pelo fato de que sua identidade agora é construída dentro de uma estrutura discursiva que responde a demandas técnicas, e não a desejos genuínos. O desafio não é apenas compreender esse processo, mas encontrar formas de resistir a ele sem cair na ilusão de que a simples recusa da tecnologia nos libertará de sua influência.

Enquanto isso, sigo questionando: será que ainda somos autores da nossa própria subjetividade, ou apenas produtos bem organizados de um sistema que nos define antes mesmo de podermos nos definir?

Referências

BAUMAN, Z. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.

FREUD, S. O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1930.

HARARI, Y. Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.



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