Adolescência: a brutalidade como última linguagem
Na série Adolescência, o plano-sequência não é apenas recurso técnico — é denúncia ética. Jamie, o garoto de treze anos acusado de um assassinato brutal, é o corpo onde se inscreve um discurso que a sociedade adulta terceirizou há muito tempo. Um discurso digital, fragmentado, sem elaboração simbólica, onde o desejo é substituído por algoritmos e a dor vira conteúdo.
Byung-Chul Han nos alerta para a extinção da negatividade: vivemos numa era onde tudo precisa ser positivo, rápido, visível. Não há mais espaço para o recuo, para o recalque, para o silêncio elaborativo. E Freud, em seu modelo pulsional, já nos dizia: a cultura é feita a partir da tensão, do recalque e da sublimação. Sem isso, não há elaboração — só descarga. Sem espaço para o desejo, resta apenas o ato.
É aqui que Fédida entra: o trauma não simbolizado, não escutado, não elaborado, retorna no real — e muitas vezes como violência. Jamie não agiu de forma gratuita. Ele performou, com brutalidade, o que ninguém quis escutar: a falência de um modelo de educação que troca presença por funcionalidade, vínculo por conectividade, afeto por Wi-Fi.
A chamada “educação digital” não é educação. É terceirização afetiva. O adolescente não aprende a elaborar — aprende a reagir. E reage com os mesmos códigos que os adultos entregaram a ele, sem mediação, sem filtro, sem cuidado. O problema não é a tela. É o silêncio que ela encobre. E quando esse silêncio se rompe, não é com palavras. É com sangue.
A série traz questões que costumam ser tratadas em análises mais convencionais: quem é o culpado, qual o significado do final, a técnica do plano-sequência, a relevância cultural e até o sucesso de audiência. Mas sob a perspectiva que aqui propomos, a culpa não está em um personagem, mas em um sistema educacional e social que naturaliza o abandono simbólico. O final não é revelação: é desfecho de uma ausência longa e ignorada.
O plano-sequência, então, não é só técnica — é símbolo de um tempo que não tem pausa. A relevância da série está em mostrar que estamos colhendo agora os frutos de décadas de terceirização afetiva. O sucesso de audiência pode ser, ironicamente, um novo sinal de que estamos consumindo o sintoma como espetáculo.
E quanto ao futuro da série? Ele já está em curso. Está nas escolas, nas casas, nas telas onde a infância é entregue sem mediação. A verdadeira pergunta não é se haverá continuação. É se, como sociedade, seguiremos assistindo passivamente… ou se aprenderemos, enfim, a escutar.
A violência adolescente não é surpresa. É a última linguagem possível quando todas as outras foram desconsideradas.
Escrito por José Antônio Lucindo da Silva
CRP: 06/172551
Psicólogo, pensador clínico e autor do blog Mais Perto da Ignorância
Referências:
FÉDIDA, Pierre. O ato ausente: ensaios de psicanálise. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2002.
FREUD, Sigmund. O ego e o id (1923). In: Obras completas – volume 16. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização (1930). In: Obras completas – volume 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Petrópolis: Vozes, 2018.
Netflix. Adolescência. Direção: Philip Barantini. Reino Unido: Netflix, 2025. Série de TV (4 episódios).
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