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ROLÊ NA IGNORÂNCIA: O DIA EM QUE O DISCURSO PERDEU PARA O CONCRETO

ROLÊ NA IGNORÂNCIA: O DIA EM QUE O DISCURSO PERDEU PARA O CONCRETO


#maispertodaignorancia
#norolecomaignorancia

Estou eu, viajando por aí, em pleno feriado de Carnaval. Sim, esse feriado que, para alguns, é um grande evento cultural e, para outros, uma desculpa para fechar tudo e atrapalhar a vida de quem não está interessado na folia. Mas enfim, decidi aproveitar o tempo livre para visitar uma cidade pequena, daquelas que a gente escuta falar, mas raramente pisa. Algo em torno de 17 ou 18 mil habitantes – não que isso faça diferença, porque a verdade é que, para além da estatística, o que interessa mesmo é o que se sente no lugar.

E foi exatamente isso que me surpreendeu. Existe uma lucidez aqui que eu achava extinta, talvez uma relíquia de tempos mais simples, ou, quem sabe, uma resistência à idiotização acelerada pelas redes sociais. A internet chegou, está por toda parte, e ainda assim, as pessoas falam umas com as outras. Um fenômeno digno de estudo.

Saí para caminhar logo cedo, por volta das 6h30, e observei algo que me fez pensar. Uma praça, alguns idosos passeando, um clima tranquilo. Mas o que realmente me chamou a atenção foi uma cena que, em qualquer outro contexto, poderia passar despercebida: dois senhores conversando em uma passarela sobre um riozinho qualquer. Um indo, outro voltando. E no meio, a ponte. Olha só, metáfora de graça!


Ali estavam eles, cada um com suas cargas identitárias – porque, afinal, no mundo de hoje, tudo tem que ter uma identidade, uma representatividade, um rótulo, um pertencimento discursivo. Mas não, nada disso estava em jogo ali. O que se passava era muito mais simples, e talvez seja exatamente por isso que muitos não vão entender.

Eles começaram reclamando do feriado. Sim, porque para alguns, Carnaval é sinônimo de folga e festa, mas para outros, é um atraso de vida. "Pra quê feriado, se o país tá uma merda?", soltou um deles. O outro concordou e acrescentou que a crise só piora. E então veio a grande revelação: eles discutiam política. Mas não com as hashtags prontas, nem com o desespero infantil de quem precisa escolher um lado para existir. Não! Eles falavam da vida real.

Nada de "esquerda", "direita", "centro", "executivo", "legislativo", ou qualquer um desses bordões que transformaram a política num reality show para os desocupados digitais. Nada de "lacração", "isentão", "patriota" ou "progressista". O papo era sobre o preço do arroz, do feijão, do café. Sobre o quanto era possível ou não encher a geladeira no final do mês. Sobre como o governo, qualquer governo, deveria garantir o básico. E sobre como não estava garantindo.

Se você, leitor atento e possuidor de todas as certezas do mundo, quiser puxar essa conversa para algum lado político, fique à vontade. Mas saiba: você estaria errado. Porque o que esses dois estavam dizendo era mais profundo do que qualquer thread no Twitter ou qualquer mesa-redonda de analistas de WhatsApp. Eles estavam falando do concreto. Daquilo que dói no bolso, que pesa na mesa, que se sente no estômago.

E, veja bem, eles não estavam buscando apoio. Não estavam esperando que algum político milagroso descesse do céu para resolver seus problemas. Eles estavam fazendo o que quase ninguém mais faz: pensando. E mais do que isso: percebendo que, independente do nome na cadeira do poder, a realidade continuava apertada.


"Mas no ano passado, ainda dava pra comer direito", um deles disse. E essa frase, que pode parecer simplória, na verdade, é devastadora. Porque, ao contrário das ilusões alimentadas pelo marketing político, a percepção real das pessoas não se baseia em narrativas bem construídas. Ela se baseia em comida no prato.

E é aqui que eu te pergunto, caro leitor: você está comendo melhor hoje do que há um ano? Se a resposta for não, então todo o resto é ruído.

Podemos discutir filosofia, identidade, subjetividade, metafísica e até mesmo espiritualidade. Mas antes de qualquer coisa, precisamos comer. E enquanto não entendermos que o discurso mais importante é aquele que cabe na mesa do jantar, vamos continuar rodando em círculos, achando que a solução está num slogan político ou num textão bem escrito.

Então, da próxima vez que você quiser discutir política, pergunte-se: estou falando da vida real ou de uma simulação criada pela minha bolha ideológica? Porque, no fim do dia, enquanto alguns discutem grandes conceitos abstratos, outros apenas querem saber se vão conseguir pagar pelo próximo quilo de arroz.


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