Eu, um Ignorante do Textão: A Insustentável Leveza da Discursividade Virtual
Sou, antes de tudo, um sobrevivente. Sobrevivi a textões com mais de 140 caracteres, e, pasmem, estou aqui para contar minha história. Sim, caro leitor, eu sou daqueles que ousam enfrentar páginas inteiras de papel impressas com palavras difíceis, como "profundidade", "complexidade" e, Deus me livre, "bibliografia". Aliás, já começo minha saga perguntando: quem teve a ideia genial de que pensamento humano cabe em 240 caracteres? A mesma pessoa que acredita que um Big Mac pode substituir uma refeição saudável, provavelmente.
Vejamos: em um mundo onde ninguém lê, ninguém interpreta, mas todo mundo tem opinião, resolvi mergulhar nesse oceano raso das redes mediáticas. Que perigo, não? Estamos diante de um paradoxo: jamais tivemos tanta informação e, ao mesmo tempo, tanta ignorância acumulada. Posso, literalmente, carregar a Biblioteca de Alexandria no bolso, mas o que faço com essa riqueza toda? Posto selfies. Genial, admito.
Daniel Kahneman, em seu livro "Rápido e Devagar" (Kahneman, 2012), diz que nosso cérebro é preguiçoso e busca atalhos mentais. Não me surpreende: para que gastar energia lendo se eu posso "lacrar" com meia dúzia de frases prontas? Afinal, complexidade exige esforço, esforço gera cansaço, e cansaço ninguém quer. Está explicado o mistério da popularidade do Twitter: a humanidade descobriu o conforto mental em pequenas doses.
Mas veja, eu, diferente de você, caro leitor distraído, realmente tento entender esses mistérios. Li recentemente (sim, eu li um livro inteiro, pasme!) "Por que não somos racionais?", de Hammond Consenza (Consenza, 2016). Descobri que somos influenciados o tempo todo por estímulos externos, mesmo que achemos ser livres pensadores. Pois é, liberdade é apenas uma bela fantasia vendida em curtos vídeos motivacionais e hashtags lacradoras. Hashtag "me engana que eu gosto".
Falando em hashtags, é impressionante como as pessoas adoram se rotular hoje em dia. O cidadão sente uma tristeza profunda, um sofrimento real, e o que ele faz? Corre postar nas redes: "#depressão". Agora é oficial, ele virou uma hashtag, ganhou uma identidade discursiva e, de bônus, perdeu a profundidade da experiência real. Peter Fédida já avisou em "A Força do Esquecimento" (Fédida, 1996): transformar sofrimento em rótulo discursivo tira sua potência. Mas quem liga pra potência quando se tem curtidas?
É claro que esse discurso superficial cai no senso comum. Resultado: transtornos reais como depressão ou ansiedade se tornam "frescura", "coisa da sua cabeça" ou, na pior hipótese, "modinha". Parabéns a nós, conseguimos banalizar até o sofrimento psíquico! Freud, certamente, estaria orgulhoso da nossa regressão coletiva ao infantilismo emocional (Freud, 2010). Hashtag #evolução.
Christopher Lasch, em sua obra "A Cultura do Narcisismo" (Lasch, 1983), alertou há décadas sobre esse fenômeno da superficialidade narcísica. Mas claro, isso está num livro de mais de 200 páginas, portanto, esqueça, ninguém vai ler mesmo. Melhor ficar com frases impactantes tipo "Seja você mesmo, desde que agrade os outros". Afinal, não há nada mais autêntico do que uma autenticidade construída para gerar likes, não é?
A profundidade é dolorosa, admito. Talvez por isso evitemos experiências difíceis, aquelas que realmente geram crescimento pessoal. Hoje, em nome do autoconhecimento, evito tudo que me desagrada, esquecendo que é exatamente o desconforto que cria julgamento crítico e caráter. Não, mas isso dói. Melhor ficar quietinho, protegendo meu frágil "eu discursivo" atrás da tela do celular. Como diria Bauman em "Amor Líquido" (Bauman, 2004), estamos confortavelmente vivendo relações superficiais e descartáveis. Maravilha, não preciso me preocupar com profundidade alguma.
E quando falamos de influencers? Ah, esses maravilhosos seres que vivem dentro de cabines com ar condicionado, iluminados por ring lights, sempre felizes, magros, bem-sucedidos e, obviamente, superficiais. Eu? Faço minhas reflexões sentado numa praça pública, na correria, sem glamour algum. É provável que seja por isso que ninguém me leve a sério, já que autenticidade hoje precisa de filtro e edição profissional.
Por fim, me pergunto: quem é esse "eu" que emerge dessas discursividades rasas? A resposta é triste e previsível: ninguém. Esse "eu" virtual, desconectado da realidade, sem substância, sem materialidade, é uma fantasia egocêntrica construída para consumo rápido. Um produto com prazo de validade curto, consumido e descartado logo após o post seguinte.
Portanto, caro leitor que chegou até aqui (se é que alguém chegou), parabéns. Você sobreviveu a um textão de verdade, cheio de ironia, sarcasmo e algumas verdades desconfortáveis. Mas fique tranquilo, amanhã tudo volta ao normal: você poderá voltar a consumir superficialidade sem culpa nenhuma. Afinal, refletir é difícil, viver superficialmente é muito mais prático.
#maispertodaignorancia
#norolecomaignorancia
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.
CONSENZA, Hammond. Por que não somos racionais? Como o cérebro faz escolhas e toma decisões. Porto Alegre: Artmed, 2016.
FÉDIDA, Pierre. A Força do Esquecimento. São Paulo: Escuta, 1996.
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
KAHNEMAN, Daniel. Rápido e Devagar: Duas formas de pensar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
LASCH, Christopher. A Cultura do Narcisismo. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1983.
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