A Ilusão de Liberdade na Palma da Mão
Viajar deveria ser um exercício de liberdade. Uma pausa no tempo, um distanciamento da rotina, um mergulho na experiência presente. Sempre imaginei que ao sair da cidade, ao deixar para trás os rostos conhecidos e as paisagens habituais, seria possível se desconectar de tudo aquilo que nos prende ao dia a dia. Mas não é bem assim.
Recentemente, estive em um hotel. Uma viagem rápida, uma tentativa de sair do habitual. Meu objetivo era simples: descanso. Mudar de ares, como dizem. Estar ali, naquele espaço diferente, com outras pessoas ao redor, me fazia sentir, de certa forma, deslocado. Mas esse deslocamento deveria ser justamente o encanto da viagem, certo? Um novo cenário, novas interações, uma chance de estar presente em um contexto diferente.
Foi então que me deparei com uma cena que me fez repensar o que significa, de fato, estar presente.
Era uma família. Não sei precisar quantos eram, talvez três ou quatro casais, talvez um grupo maior. Estavam juntos, rindo, conversando. Um momento que, à primeira vista, parecia genuinamente feliz. Crianças corriam entre as cadeiras, adultos brindavam. O tipo de cena que poderia ser descrita como um instante de harmonia. Mas bastou um toque, um som quase insignificante, para que tudo mudasse.
Um celular vibrou. Uma notificação. Alguém olhou a tela. O sorriso desapareceu. Os ombros caíram. O olhar se perdeu.
A mensagem recebida, seja lá qual fosse, carregava uma carga de realidade que não cabia naquele espaço. Algo que não pertencia ao presente da viagem, mas ao passado que insistia em puxar de volta. Em questão de segundos, aquela pessoa não estava mais ali. O corpo permanecia no hotel, mas sua mente já havia retornado para a cidade natal.
E foi nesse momento que percebi: ninguém mais está realmente onde está. A tecnologia nos deu um poder ilusório, o de carregar nossas vidas para qualquer lugar, mas, em troca, nos arrancou do tempo presente.
A notícia que atravessa o tempo
É claro que notícias ruins chegam. Sempre chegaram. Mas antigamente, levavam tempo. Uma carta trazia um aviso de longe, uma ligação precisava ser atendida no momento certo, um recado dependia de alguém disposto a entregá-lo. Havia um intervalo entre o acontecimento e sua chegada até nós. Um intervalo necessário para que a mente estivesse pronta para receber e processar. Agora, não há mais isso. A informação chega no exato momento em que acontece. Não há filtro, não há preparação. Não há tempo para respirar antes de ser atingido.
Isso me fez pensar na frase “notícia ruim chega depressa”. Imagine agora, no mundo hiperconectado, onde tudo é imediato. A notícia ruim não chega depressa, ela já chegou antes mesmo de termos a chance de nos desligar do contexto anterior.
Aquela pessoa da família estava feliz há poucos minutos. Cercada de parentes, brindando a viagem. E, de repente, não estava mais. O telefone vibrou e sua consciência foi sequestrada.
Mas o que mais me impressionou foi observar o efeito dessa notícia sobre os outros. Houve aqueles que, imediatamente, tentaram consolar. Houve os que ignoraram, incapazes de se envolver. E houve os que reagiram com impaciência, como se a tristeza do outro fosse uma inconveniência para a viagem.
Isso me fez lembrar Freud e seu conceito do Unheimlich, o estranho-familiar. O momento em que algo que nos era próximo se torna perturbador. E o que poderia ser mais perturbador do que ver um amigo, um familiar, sendo puxado para uma outra realidade por uma tela, por um texto, por uma vibração no bolso?
A verdade é que não sabemos mais como lidar com o sofrimento do outro. Estamos tão acostumados à mediação digital que até a tristeza alheia parece fora de contexto quando nos deparamos com ela ao vivo.
O que levamos para onde vamos?
Fiquei refletindo sobre aquilo por muito tempo. Desde que os celulares se tornaram nossa extensão, carregamos nossa cidade natal para qualquer lugar. Carregamos nossos problemas, nossas ansiedades, nossos ressentimentos, tudo dentro de um pequeno retângulo de vidro e metal.
Antes, viajar significava se desprender, ao menos temporariamente, do que ficou para trás. Havia uma ruptura clara entre estar aqui e estar lá. Agora, não há mais distância. O celular nos mantém constantemente presos ao lugar de onde viemos.
E isso me fez questionar: que liberdade é essa que achamos que temos?
Dizem que a tecnologia nos libertou. Que agora podemos ir a qualquer lugar, acessar qualquer informação, falar com qualquer pessoa, a qualquer momento. Mas essa liberdade tem um preço. E o preço é nunca mais estarmos completamente presentes em lugar algum.
Podemos estar fisicamente em uma praia paradisíaca, mas basta um toque na tela para sermos transportados de volta para os corredores do trabalho. Podemos estar em um jantar especial, mas uma notificação nos leva para um problema que ficou na cidade natal. Podemos estar em um hotel, cercado de risadas e descontração, mas uma mensagem pode nos arrancar daquele instante e nos jogar de volta em um pesadelo pessoal.
A tecnologia não nos deu mobilidade. Ela nos deu correntes invisíveis.
O peso do presente e a ilusão da escolha
Poderia dizer que bastaria desligar o celular, evitar as notificações, se proteger da avalanche de informações. Mas seria mesmo tão simples?
O mundo já não nos permite o silêncio. Se não respondemos uma mensagem rapidamente, somos cobrados. Se não estamos disponíveis, somos esquecidos. Se ignoramos uma chamada, podemos perder algo importante. A própria estrutura social nos condicionou a nunca estar verdadeiramente desconectados.
E assim, seguimos carregando o peso do mundo inteiro na palma da mão.
A ilusão de liberdade nunca foi tão forte. Nem tão frágil.
E então, me pergunto: quando foi que aceitamos essa troca? Quando foi que decidimos que estar em todos os lugares era mais valioso do que estar, de fato, em um só lugar?
Talvez nunca tenhamos decidido. Talvez apenas tenhamos sido levados, pouco a pouco, até esse ponto.
Mas se há algo que ficou claro para mim depois daquela viagem, foi isso: a maior prisão do mundo moderno cabe no nosso bolso.
E carregamos ela para onde quer que vamos.
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