O Direito de Ser Assaltado e a Ilusão da Segurança: Eu Pago Impostos Para Isso?
1. Introdução: O Estado Garantiu Meu Direito de Ser Vítima
Ah, o Brasil! Terra de sol, carnaval, suor e, claro, uma criminalidade tão rotineira que já virou parte da nossa cultura. Aqui, não basta pagar impostos, contribuir para o funcionamento da máquina pública e se autodenominar "cidadão de bem". Você precisa aprender a sobreviver.
Se você for assaltado, a culpa é sua. Se for morto por um celular, também. Se apanhar até quebrar uma costela e tiver um dedo mordido para levar sua aliança, bem, o erro foi seu. Afinal, quem mandou estar na rua?
Recentemente, um ciclista foi assassinado em frente ao Parque do Povo, em São Paulo, por volta das 6h da manhã. Dois homens em uma moto o abordaram, atiraram e levaram seu celular. Dias depois, uma médica foi atacada às 4h30 da manhã enquanto corria e teve a costela quebrada. Mas a pergunta que dominou as redes sociais não foi "como chegamos a esse ponto?", e sim:
"Mas por que ele estava pedalando?"
"Mas por que ela estava correndo nesse horário?"
E aqui temos a lógica perfeita da sociedade brasileira: a inversão completa da culpa. Se o Estado falha em garantir segurança, a responsabilidade recai sobre o indivíduo.
2. A Liberdade de Ir e Vir... Com Restrições Invisíveis
Byung-Chul Han nos alertou que a sociedade contemporânea opera pela internalização da culpa. Não há um Estado opressor que proíbe você de sair na rua. Você mesmo se reprime. Se algo acontece, o erro foi seu.
Afinal, todos sabemos as regras não escritas:
Sair na rua de madrugada? Você está pedindo para ser assaltado.
Andar em certas regiões da cidade? Você está pedindo para ser morto.
Dirigir um carro bom? Você está pedindo para ser sequestrado.
Claro, a Constituição nos garante o direito de ir e vir, mas apenas durante o horário comercial.
Nietzsche chamaria isso de moralismo reativo: uma obediência cega às condições impostas pelo medo. A diferença é que, hoje, ninguém precisa de um governo autoritário para proibir nossa liberdade. Nós mesmos nos convencemos de que não devemos exercê-la.
3. O Espetáculo da Violência e a Alienação do Medo
Cioran dizia que a civilização moderna nos deu o conforto de não precisar mais encarar o real. O real é insuportável. Assim, ao invés de lidar com a violência como um problema estrutural, preferimos transformá-la em espetáculo.
O noticiário exibe imagens chocantes, repetidas à exaustão, enquanto a sociedade reage com distanciamento e culpa da vítima. Porque admitir que o problema é sistêmico seria doloroso demais. Melhor dizer:
"Isso é coisa de São Paulo, aqui é diferente."
"Ela corria de madrugada, estava pedindo por isso."
"Andar de bicicleta tão cedo? Que imprudência!"
A violência virou um evento midiático, um reality show de tragédias cotidianas que consumimos com indignação momentânea antes de voltar à normalidade.
4. A Fuga da Materialidade e a Ilusão do Mundo Virtual
Se vivemos num mundo onde a rua não nos pertence, onde a natureza se torna inabitável, onde a presença do outro nos ameaça, qual a solução?
Simples: o digital.
A iGen (Jean Twenge) é a primeira geração que aprendeu a se trancar em casa voluntariamente. O calor está insuportável? O trânsito é caótico? A violência torna a cidade um campo minado? Fique dentro do seu quarto, no seu celular, e convença-se de que esse é o mundo real.
Mas há um problema. Como lidar com a ansiedade material de estar fora? Como enfrentar o outro sem os filtros do digital? Como habitar um mundo físico quando passamos tanto tempo dentro de uma bolha de algoritmos?
A resposta é simples: não lidamos. Por isso, vemos uma geração ansiosa, alienada e apavorada com a própria existência fora do digital.
5. Quando a Materialidade Se Impõe: O Colapso Climático e Social
Veja a ironia final: a materialidade não desaparece só porque ignoramos sua existência. O calor não se importa se você tem ar-condicionado. A violência não diminui porque você evita sair à noite. A degradação ambiental não desacelera porque você escreve um tweet sobre sustentabilidade.
A materialidade grita, mas nós silenciamos.
O mundo está mais quente do que nunca. Mas a solução vendida é mais ar-condicionado, não um debate sério sobre mudanças climáticas.
A violência urbana cresce sem controle. Mas a resposta é trancar-se ainda mais, e não exigir políticas públicas eficientes.
A natureza se desfaz diante dos nossos olhos. Mas seguimos agindo como se houvesse um "Plano B", como se a Terra fosse descartável.
A questão é: quanto tempo ainda podemos fingir que não estamos vendo?
6. Conclusão: O Que Nos Resta Quando Até as Perguntas Foram Silenciadas?
Deixamos de fazer perguntas. E talvez essa seja a maior tragédia da nossa era.
Por que alguém tem que morrer por um celular?
Por que alguém tem que morrer por um tênis?
Por que uma mulher não pode correr às 4h30 da manhã?
Por que aceitamos tudo isso como normal?
O problema é que as respostas não importam mais. O discurso se tornou um ciclo fechado onde ninguém mais pergunta nada porque já se aceitou que não há o que mudar.
A alienação venceu. A passividade triunfou. O colapso ambiental, a violência, o medo, a ansiedade—tudo se tornou parte do jogo.
E enquanto seguimos fingindo que não há saída, a materialidade continua lá fora, esperando que, um dia, sejamos obrigados a encará-la.
Referências
Livros e Autores Citados:
Cioran, Emil. Breviário da decomposição. São Paulo: Rocco, 2011.
Han, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.
Marx, Karl. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
Nietzsche, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
Freud, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Twenge, Jean. iGen: Why Today's Super-Connected Kids Are Growing Up Less Rebellious, More Tolerant, Less Happy—and Completely Unprepared for Adulthood. New York: Atria Books, 2017.
Notícias Utilizadas:
G1 Globo. Médica atacada em SP às 4h30 da manhã. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2025/02/17/
G1 Globo. Ciclista baleado no Parque do Povo. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2025/02/13/
#maispertodaignorancia
@joseantoniolucindodasilva
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