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Eu, um produto descartável na prateleira do mercado discursivo

Eu, um produto descartável na prateleira do mercado discursivo



Introdução: A Farsa da Liberdade na Sociedade Digital

Ah, que tempos maravilhosos para se viver! Nunca estivemos tão livres, tão plenos, tão donos do nosso próprio destino – pelo menos é o que os gurus da autoajuda e os coachs do Instagram querem nos fazer acreditar. Afinal, estamos todos aqui, brilhando no feed infinito, consumindo discursos pré-moldados e vendendo nossas identidades digitais como se fossem produtos de supermercado. E o melhor de tudo? A ilusão da escolha. Podemos ser quem quisermos, desde que esse "eu" seja comercializável, engajável e rentável para os algoritmos que regem essa bela distopia do século XXI.

Se Freud estivesse vivo, talvez revisitasse O Mal-Estar na Civilização (1930) e reescrevesse tudo, atualizando sua teoria do recalque para algo mais... contemporâneo. Afinal, hoje não reprimimos nada – muito pelo contrário. Estamos todos em um estado de hiperexpressão, gritando para o vazio do ciberespaço, competindo por likes e validando nossos sofrimentos como medalhas de honra no grande jogo da meritocracia emocional.

Capítulo 1: A Grande Autoescravização e a Supremacia do Engajamento

Vamos falar de liberdade, essa bela palavra vazia que adorna os discursos neoliberais e os termos de uso das plataformas digitais. Byung-Chul Han (2010) já havia nos alertado: não somos mais oprimidos por um sistema repressivo tradicional; agora, a opressão é positiva, voluntária, e a escravidão se tornou um projeto pessoal. Nós trabalhamos para os algoritmos sem perceber. A cada curtida, a cada compartilhamento, a cada postagem "autêntica", estamos alimentando o mercado de dados, transformando nossa subjetividade em estatísticas monetizáveis.

E o mais engraçado? Fazemos isso com um sorriso no rosto. Nos sentimos importantes, vistos, necessários. Ah, a doce ilusão do reconhecimento! Mal percebemos que somos apenas peças descartáveis em um sistema que se alimenta da nossa necessidade de existir discursivamente. Se não postamos, não somos. Se não engajamos, não valemos.

Herbert Marcuse (1955) já havia nos avisado sobre a repressão excedente: o sistema capitalista não apenas controla nossos corpos, mas também nossas mentes, nossos desejos e até mesmo nossas frustrações. Trabalhamos não apenas para sobreviver, mas para manter uma performance constante, uma "identidade digital" que não pode jamais demonstrar fraqueza – a menos, é claro, que essa fraqueza gere engajamento e possa ser vendida como conteúdo.

Capítulo 2: A Liquidez do Eu e a Arte de se Autoexterminar nas Redes

Bauman (1997) descreveu a modernidade líquida como um estado de fluidez constante, onde as relações humanas se tornaram descartáveis e as identidades são construídas para serem imediatamente dissolvidas no próximo ciclo de tendências. O "eu" moderno não é apenas líquido – ele é efêmero, volátil e desesperadamente faminto por validação externa.

As relações não são mais baseadas na troca genuína, mas na performance. O próximo vínculo já está previsto antes mesmo do término do atual. Estamos todos nos vendendo, todos nos promovendo, e o outro só existe na medida em que serve para confirmar nossa existência digital. Se o outro deixa de nos servir, descartamos sem culpa. A fluidez se torna o status quo da mediaticidade, e a verdade se mede pelo número de curtidas, não pela materialidade concreta.

O problema? A realidade insiste em nos lembrar que existe. Podemos ignorá-la, mas, cedo ou tarde, ela nos encontra. E então vem o choque: tudo aquilo que construímos dentro do espaço discursivo não nos protege da finitude, da solidão e da inevitável insignificância do "eu".

Capítulo 3: Depressividade, Cancelamento e a Aniquilação do Outro

Fédida (2001) nos alertou sobre a impossibilidade do luto na contemporaneidade. O tempo de elaboração foi sequestrado pelas redes, e a depressividade se tornou um sintoma estrutural do nosso tempo. Mas, é claro, até a depressão foi mercantilizada. Hoje, não há mais espaço para o luto genuíno – apenas para narrativas vendáveis sobre o sofrimento.

Quando o sujeito não performa adequadamente dentro da lógica do engajamento, ele é cancelado. O cancelamento não é apenas a exclusão de uma voz, mas a negação da alteridade. Byung-Chul Han (2017) fala sobre a negação do outro na era digital, onde qualquer divergência é imediatamente suprimida. Não há mais espaço para o contraditório – apenas para a reafirmação constante do que já é aceito dentro da bolha.

E aí entra o paradoxo: se o eu só existe pelo outro, o que acontece quando eliminamos o outro? O "eu" se torna uma simulação vazia, um eco sem referência, um espectro de identidade que flutua sem sustento material. E o pior: acreditamos que estamos no controle.

Capítulo 4: A Transvaloração Mercantilizada e o Niilismo Algorítmico

Nietzsche (1887) propôs a transvaloração dos valores como uma saída para o niilismo. O problema? O mercado capturou essa ideia e a transformou em produto. Hoje, "seja você mesmo" virou slogan publicitário. A autenticidade virou branding. E a transvaloração se tornou uma ferramenta de marketing pessoal.

Se não há mais o outro, se tudo é engajamento, se até o sofrimento é mercantilizado, o que nos resta? Apenas a performance infinita, um espetáculo onde todos atuam e ninguém assiste.

Cioran (1987) já havia previsto: a lucidez extrema revela a insignificância de tudo. Mas, na era digital, até a insignificância pode ser monetizada.

Conclusão: A Ironia do Desespero e a Impossibilidade de Resistência

Então, o que fazer diante desse cenário? Resistir? Mas como resistir a algo que já absorve a resistência e a transforma em mercadoria? Até o discurso contra o sistema já é parte do sistema.

O desespero não é um erro, é a única resposta coerente. Não há saída. Não há fuga. Apenas a constatação da própria prisão.

E, no fim, voltamos ao início: seguimos brilhando no feed infinito, esperando por mais um like que confirme que, pelo menos por mais alguns segundos, ainda existimos.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Jorge Zahar, 1997.

BYUNG-CHUL HAN. A Sociedade do Cansaço. Editora Vozes, 2010.

BYUNG-CHUL HAN. No Enxame: Perspectivas do Digital. Editora Vozes, 2017.

CIORAN, Emil. Breviário de Decomposição. Rocco, 1987.

FÉDIDA, Pierre. Luto e Melancolia: O Trabalho do Luto no Psicanalista. Companhia das Letras, 2001.

FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Companhia das Letras, 1930.

MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Zahar, 1955.

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Companhia das Letras, 1887.

ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância. Intrínseca, 2019.

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