Já não é de hoje que discutimos a iminência de uma catástrofe climática. Desde a ECO-92, passando pelo Acordo de Paris, e chegando ao relatório recente que aponta uma contração de 50% do PIB global até 2090 por conta da crise ambiental, parece que vivemos uma versão global de Crônica de uma Morte Anunciada, de Gabriel García Márquez. Sabemos o que vai acontecer, as evidências estão diante de nós, mas seguimos confortavelmente ignorantes, trancados em salas climatizadas, fingindo que o problema ainda é uma questão de futuro. O abismo não está chegando; estamos nele, só que de olhos vendados.
O Clima já Desistiu de Nós
A ironia disso tudo é que os alertas são cada vez mais frequentes, mas a resposta global é uma chuva de discursos tão ineficazes quanto previsíveis. Um exemplo clássico: segundo o relatório divulgado pelo Institute and Faculty of Actuaries (IFoA), sem medidas urgentes, o mundo enfrentará uma "insolvência planetária" nas próximas décadas. Entre as previsões mais catastróficas estão mortes em massa, eventos climáticos extremos e colapsos econômicos (Exame, 2025). No entanto, o que realmente ocorre nas reuniões e cúpulas ambientais? Produz-se mais discurso e menos ação. É como se estivéssemos num jantar de gala discutindo a fome mundial, sem nos importar que o prato principal seja, ironicamente, a destruição do planeta.
Por que não Discutir no Meio do Mato?
Vamos lá, sejamos honestos: como é possível discutir seriamente sobre o futuro ambiental do planeta enquanto nos escondemos em salas climatizadas, cercados por bufês gourmet e luzes de LED sustentáveis (afinal, precisamos parecer engajados, certo?). Que tal propor algo mais autêntico? A próxima cúpula deveria ser realizada no coração do Amazonas, sem eletricidade, com um mochilão nas costas. Ali, diante do calor sufocante, dos mosquitos vorazes e da umidade que penetra até a alma, talvez os grandes líderes mundiais pudessem sentir, ainda que minimamente, o que significa viver em um ambiente hostilizado por nossas próprias ações.
E nem adianta argumentar que isso seria inviável. Afinal, não é mais inviável do que esperar que as soluções para a crise climática surjam de conversas desconectadas da realidade. O verdadeiro problema é que o discurso ambiental está tão contaminado quanto os rios e florestas que fingimos proteger. Criam-se selos ecológicos, relatórios de sustentabilidade e metas para 2050, mas tudo isso é apenas uma fachada. No fundo, o objetivo é manter o sistema de consumo em funcionamento, não salvar o planeta.
A "Mesa Cheia" e a Ilusão do Progresso
Lembro-me de uma analogia simples, mas poderosa: uma mesa cheia de comida transforma discursos em silêncio. No entanto, a produção dessa mesa não é fruto de debates ou relatórios, mas do trabalho material — plantar, colher, observar as estações. Esse ciclo básico de existência foi substituído por fertilizantes químicos, monoculturas intensivas e venenos que matam mais do que pragas. E agora? Nem mesmo as estações são confiáveis. As chuvas sazonais são um jogo de azar, e eventos climáticos extremos desabrigam populações inteiras, como vimos recentemente em Porto Alegre.
A questão é que a industrialização nos afastou não só da terra, mas também da capacidade de enxergar o óbvio. Nossos antepassados sabiam o momento de plantar e colher porque estavam conectados ao tempo. Nós, por outro lado, confiamos em apps de previsão meteorológica enquanto nos trancamos em quartos com ar-condicionado, completamente alienados do que acontece lá fora.
Bem-vindos ao Antropoceno
Vivemos na era do Antropoceno, onde o impacto humano alterou irreversivelmente os ciclos naturais. É uma era marcada pela toxicidade que jogamos na terra, pela degradação dos recursos e pelo consumo insaciável. E a cultura que emerge dessa era é igualmente tóxica: um discurso vazio que tenta vender a ideia de sustentabilidade enquanto perpetua a destruição. É a lógica do marketing ambiental, onde salvar o planeta virou uma mercadoria.
Se não fosse tão trágico, seria cômico. Grandes empresas se gabam de suas iniciativas "verdes" enquanto continuam explorando recursos naturais em larga escala. Conferências ambientais servem mais para produzir selfies do que soluções. E nós, consumidores, somos cúmplices, pois preferimos o conforto das prateleiras do supermercado à reflexão sobre o impacto de nossas escolhas.
Ironia Final: Discursando sobre o Fim
A maior ironia disso tudo, no entanto, é que até mesmo esta reflexão se torna parte do ciclo que criticamos. O algoritmo que processa este texto provavelmente o classificará como uma opinião ambientalista e o integrará a uma bolha digital que, no final, alimenta o mesmo sistema que denunciamos. Estamos presos em uma rede de discursos que mascaram o desespero da nossa condição. Discutimos sobre o fim do mundo como se ele fosse um tema acadêmico, algo para ser debatido e não vivido.
Conclusão: Quando o Abismo nos Engolir
Se há algo que o relatório do IFoA deixa claro, é que estamos ficando sem tempo. A crise climática já não é uma ameaça futura; é uma realidade presente. E, no entanto, continuamos trancados em nossos quartos com ar-condicionado, desconectados da materialidade que sustenta nossa existência.
A verdade é que não precisamos de mais discursos. Precisamos de ações. E essas ações não surgirão de cúpulas climatizadas ou campanhas publicitárias. Elas virão, se vierem, de uma reconexão com a terra, com o tempo e com a realidade que temos ignorado por tanto tempo. Até lá, continuaremos vivendo essa crônica de uma catástrofe anunciada, esperando que alguém, em algum lugar, faça o que todos nós sabemos que precisa ser feito.
---
Referências
EXAME. Planeta pode perder 50% do PIB por catástrofe climática até 2090. Disponível em: https://exame.com/esg/planeta-pode-perder-50-do-pib-por-catastrofe-climatica-ate-2090/. Acesso em: 19 jan. 2025.
MÁRQUEZ, Gabriel García. Crônica de uma Morte Anunciada. Rio de Janeiro: Record, 1981.
#maispertodaignorancia
@joseantoniolucindodasilva
Comentários
Enviar um comentário