Avançar para o conteúdo principal

A Lei da Ilusão: Quando a Materialidade se Esconde Atrás das Telas



Introdução

É curioso como as leis, essas tentativas desesperadas de ordenar a bagunça que criamos, muitas vezes nascem tão distantes da realidade material quanto uma postagem nas redes sociais. A recente proibição do uso de celulares nas escolas é um exemplo emblemático. À primeira vista, a proposta parece louvável: reconectar os alunos ao mundo físico, trazer a atenção de volta às salas de aula e, quem sabe, salvar a próxima geração de uma existência perdida nas profundezas do ciberespaço. No entanto, será que essa proibição, imposta de cima para baixo, entende o que está realmente em jogo? Eu, sinceramente, duvido.

Estamos diante de um problema que vai muito além do que se pode resolver com decretos. Esta lei, ao invés de tocar na raiz da questão, parece reforçar aquilo que nos trouxe até aqui: a incapacidade de simbolizar nossas experiências, de lidar com nossas pulsões e, principalmente, de compreender que o "eu" material foi há muito dissolvido pela superficialidade digital. Vamos explorar juntos por que essa iniciativa está tão distante da materialidade e, no processo, questionar se ela pode oferecer qualquer resposta significativa.

A Crise do “Eu”: Um Narcisismo de Telas

Freud, em sua sabedoria, nos ensinou que o recalque é necessário para que a sublimação aconteça. Ele é a base que nos permite transformar nossos impulsos em algo construtivo. No entanto, vivemos em uma época de "excesso", onde recalque é uma palavra esquecida, substituída por permissividade e validação instantânea. Nesse contexto, como pode uma lei que simplesmente retira as telas das salas de aula resolver a questão de um "eu" que já está fragmentado, perdido entre likes e comentários?

O paradoxo é claro: os jovens são ensinados a se destacar nesse mar de eus digitais, mas permanecem completamente sozinhos em sua materialidade. A alteridade, o reconhecimento do outro como legítimo, foi sacrificada em nome de uma interação plana, onde o outro serve apenas como reflexo ou validação do "eu". Quando o celular é retirado, o que resta? Uma sala de aula onde a atenção está tão corroída quanto os laços sociais que antes sustentavam a convivência humana.

A Materialidade Ausente e a Alienação Permanente

Winnicott, ao falar sobre a capacidade de estar só, nos lembra que é na solidão que encontramos a base para o amadurecimento. No entanto, como estar só em uma era onde até a solidão é mediada por telas? O que essa lei propõe, ao proibir celulares nas escolas, é uma ruptura abrupta com um hábito já consolidado. Mas ela esquece que não se pode desconectar algo que foi projetado para ser indispensável.

As telas não são apenas instrumentos de distração; elas são ferramentas que moldam nossas percepções, emoções e relações. Ao removê-las sem oferecer uma base material para sustentar o "eu", corremos o risco de expor jovens a tensões que eles não estão preparados para enfrentar. A dependência tecnológica, que se instalou desde cedo, moldou cérebros e comportamentos de forma tão profunda que retirá-la é como puxar o tapete de alguém que nunca aprendeu a andar sem ele.

A Ironia da Substituição: Do Recalque à Demanda

Freud apontou que a cultura sempre exigiu recalque para que a civilização pudesse florescer. Hoje, vivemos o oposto: uma cultura da demanda, onde tudo é permitido, mas nada é verdadeiramente desejado. O prazer imediato, promovido pelas telas, criou trilhas de recompensa no cérebro que se sobrepõem à capacidade de buscar algo além do imediato. E essa é a base do problema: retirar o celular não elimina a dependência; apenas expõe o vazio.

Quando essa lei tenta “resolver” o problema dos celulares nas escolas, ela ignora o fato de que esses dispositivos já se tornaram estruturais para o "eu" digital. Esse "eu", que só existe quando postado e validado, entra em colapso na ausência da tela. Não há recalque, não há sublimação, e certamente não há espaço para elaborar o desejo em algo que transcenda a gratificação instantânea.

A Contradição da Materialidade: Viver e Não Estar

A ironia maior é que, ao tentar reconectar os jovens ao mundo material, essa lei parece esquecer que a materialidade já foi há muito abandonada. O "eu material" não é mais uma base sólida; ele foi fragmentado, alienado e transformado em uma mercadoria dentro do mercado digital. Quando removemos as telas, o que resta? Um espaço vazio, onde a ansiedade e a depressão se tornam inevitáveis, porque o sujeito foi ensinado desde cedo a existir apenas através de validações externas.

O paradoxo é evidente: estamos tentando salvar jovens de uma dependência que nós mesmos criamos, mas fazemos isso de maneira superficial, sem tocar nas raízes do problema. A atenção, que deveria ser cultivada, foi reduzida a estímulos rápidos. A alteridade, que deveria ser construída, foi descartada em nome de interações planas e repetitivas.


Conclusão

Em última análise, esta lei é uma tentativa de resolver um problema estrutural com medidas simbólicas. Ela não toca na crise de subjetividade, na ausência de recalque ou na alienação promovida pela dependência tecnológica. Ao contrário, ela expõe essas questões de maneira ainda mais aguda, sem oferecer as ferramentas necessárias para lidar com elas.

O "eu" material, que deveria ser a base para a construção da identidade, foi substituído por um "eu" digital que vive de validação instantânea e superficial. Ao remover o celular, a lei não elimina o problema; ela apenas torna visível o vazio que foi criado por décadas de dependência tecnológica e alienação social.

É preciso mais do que leis para enfrentar essa crise. É preciso reavaliar como nos relacionamos com a tecnologia, como construímos nossas subjetividades e, acima de tudo, como podemos reconectar o "eu" ao mundo material de maneira significativa. Sem isso, continuaremos a criar soluções que, no final, apenas reforçam o problema.



JOSÉ ANTONIO LUCINDO DA SILVA
CRP: 06/172551
E-mail: joseantoniolcnd@gmail.com

Instagram: 
@joseantoniolucindodasilva


Referências 

FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

WINNICOTT, Donald. A Capacidade de Estar Só. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

HAN, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.


Site: https://maispertodaignorancia.blogspot.com/2024/11/a-nova-lei-de-proibicao-de-celulares.html

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

Eu, o algoritmo que me olha no espelho

  Eu, o algoritmo que me olha no espelho Um ensaio irônico sobre desejo, ansiedade e inteligência artificial na era do desempenho Escrevo este texto com a suspeita de que você, leitor, talvez seja um algoritmo. Não por paranoia tecnofóbica, mas por constatação existencial: hoje em dia, até a leitura se tornou um dado. Se você chegou até aqui, meus parabéns: já foi computado. Aliás, não é curioso que um dos gestos mais humanos que me restam — escrever — também seja um dos mais monitorados? Talvez eu esteja escrevendo para ser indexado. Talvez eu seja um sintoma, uma falha de sistema que insiste em se perguntar: quem sou eu, senão esse desejo algorítmico de ser relevante? Não, eu não estou em crise com a tecnologia. Isso seria romântico demais. Estou em crise comigo mesmo, com esse "eu" que performa diante de um espelho que não reflete mais imagem, mas sim dados, métricas, curtidas, engajamentos. A pergunta não é se a IA vai me substituir. A pergunta é: o que fiz com meu desejo...

Eu, um produto descartável na prateleira do mercado discursivo

Eu, um produto descartável na prateleira do mercado discursivo Introdução: A Farsa da Liberdade na Sociedade Digital Ah, que tempos maravilhosos para se viver! Nunca estivemos tão livres, tão plenos, tão donos do nosso próprio destino – pelo menos é o que os gurus da autoajuda e os coachs do Instagram querem nos fazer acreditar. Afinal, estamos todos aqui, brilhando no feed infinito, consumindo discursos pré-moldados e vendendo nossas identidades digitais como se fossem produtos de supermercado. E o melhor de tudo? A ilusão da escolha. Podemos ser quem quisermos, desde que esse "eu" seja comercializável, engajável e rentável para os algoritmos que regem essa bela distopia do século XXI. Se Freud estivesse vivo, talvez revisitasse O Mal-Estar na Civilização (1930) e reescrevesse tudo, atualizando sua teoria do recalque para algo mais... contemporâneo. Afinal, hoje não reprimimos nada – muito pelo contrário. Estamos todos em um estado de hiperexpressão, gritando par...