A obra "A Geração Ansiosa" de Jonathan Haidt traz uma análise provocativa sobre como a infância hiperconectada contribui para o aumento dos transtornos mentais. Haidt apresenta dados importantes sobre os impactos das redes sociais, a comparação constante e o isolamento que essas práticas podem gerar. No entanto, ao propor conselhos e soluções para esses problemas, o autor parece ignorar aspectos fundamentais das condições materiais e culturais da sociedade contemporânea. Esta crítica procura explorar os pontos negligenciados por Haidt, especialmente em relação à forma como a identidade, o narcisismo e a dependência tecnológica são construídos e como essa dinâmica de validação social impacta profundamente o sujeito moderno.
1. A Ignorância das Condições Materiais de Produção e a Construção do "Eu"
Uma das principais críticas à obra de Haidt está na ausência de uma análise mais profunda sobre as condições materiais de produção que sustentam a existência humana e, em última instância, moldam a forma como o "eu" se desenvolve. Haidt concentra-se nas redes sociais e na cultura digital como fatores de ansiedade, mas ignora como a construção do "eu" depende, primariamente, da vivência material. No ambiente digital, a identidade não é apenas mediada por imagens e perfis, mas também moldada por uma economia que exige que o "eu" seja um produto em constante construção. Este "eu" digital, ao invés de representar uma autêntica expressão de quem somos, reflete uma projeção condicionada pelas demandas e padrões estabelecidos por algoritmos e pela mercantilização das relações.
Em outras palavras, o "eu" digital, tal como se manifesta hoje, é alimentado por um ciclo narcisista, onde a busca por validação se torna uma necessidade constante. Haidt falha em reconhecer que essa busca incessante pela validação externa é uma construção do ambiente digital e econômico que nos cerca, e que não se resolve com conselhos para "reduzir o tempo de tela". Ele parece ignorar que o sujeito moderno já está inserido em uma lógica que o força a construir sua identidade com base na visibilidade e no engajamento. Essa projeção digital cria uma dependência que não é apenas tecnológica, mas também psicológica, e sua retirada acarreta consequências tão profundas que podem ser comparadas a sintomas de abstinência ainda não plenamente reconhecidos pela psiquiatria.
2. A Dependência Tecnológica e a Abstinência
Outro ponto negligenciado por Haidt é a forma como a dependência tecnológica molda a subjetividade e cria uma espécie de "dependência invisível". Quando ele sugere a desconexão ou a redução do uso de dispositivos, não leva em conta que essa retirada abrupta pode desencadear sintomas de abstinência psicológica e emocional, semelhantes ao que se observa em dependências químicas. A retirada de um adolescente ou adulto do ambiente digital, onde constrói sua identidade e busca validação, não é uma mudança simples. Esse processo pode gerar uma série de reações que ainda não foram devidamente catalogadas, mas que certamente terão impactos profundos na psique de um indivíduo.
Haidt parece tratar a relação com a tecnologia como algo opcional, ignorando que a construção da identidade digital se tornou uma necessidade para a manutenção da "existência social". A desconexão digital, nesse sentido, pode significar a "morte simbólica" do indivíduo, que perde o reflexo de si mesmo no olhar do outro, mesmo que esse outro seja um algoritmo. Não é apenas uma questão de reduzir o tempo de tela, mas sim de entender que a identidade moderna está profundamente entrelaçada com a presença digital e que essa retirada exige uma compreensão mais ampla dos efeitos psicológicos que ainda estamos longe de compreender plenamente.
3. O Paradoxo do "Eu" e a Questão do Narcisismo Digital
A crítica de Haidt não explora o paradoxo central da identidade digital: a construção de um "eu" que nunca se fecha, que nunca atinge um estado de completude. No ambiente digital, o "eu" está em constante projeção e comparação, criando uma dinâmica narcisista onde a validação externa é um requisito contínuo para a "existência" do sujeito. Esse narcisismo digital se reflete na frase "se eu posto, eu existo; se não posto, não existo", que resume o dilema da identidade contemporânea.
Ao desconsiderar a questão do narcisismo, Haidt perde uma oportunidade de analisar como essa dinâmica digital reforça um ciclo de vazio e ansiedade. O "eu" digital precisa de curtidas, comentários e compartilhamentos para se validar, mas esses elementos não proporcionam uma sensação de completude ou autenticidade. Pelo contrário, o ciclo de engajamento digital faz com que o "eu" se torne dependente de um reflexo contínuo, que nunca é suficiente para saciar a necessidade de validação. Esse "eu" que nunca se fecha cria uma lacuna na possibilidade de valores estáveis, pois vive de um reflexo que é, em última instância, superficial e transitório.
4. A Questão de Gênero e as Condições de Trabalho
Outro ponto que merece destaque é a questão de gênero e as condições materiais que moldam a experiência subjetiva da ansiedade, especialmente entre as mulheres. Haidt menciona que as mulheres apresentam índices de ansiedade mais altos, mas não investiga a fundo as razões materiais e históricas para essa disparidade. Com a entrada das mulheres no mercado de trabalho durante a Revolução Industrial, surgiram novas pressões e demandas que antes não faziam parte do cotidiano feminino. Hoje, com a sobrecarga de papéis sociais e expectativas de desempenho tanto no ambiente profissional quanto pessoal, as mulheres enfrentam uma carga emocional que pode, sim, contribuir para o aumento da ansiedade.
Haidt menciona a comparação estética como uma possível causa de ansiedade entre meninas e mulheres, mas isso é apenas uma faceta de um problema muito mais amplo. As condições de trabalho, a desigualdade de gênero e as demandas sociais impõem desafios psicológicos profundos, que vão além da estética. O autor ignora que a comparação com modelos ou influenciadoras digitais é uma extensão de um problema estrutural de sobrecarga emocional e pressões de desempenho que afetam diretamente a saúde mental feminina.
5. A Mercantilização da Identidade e a Ausência de Valores Estáveis
Ao sugerir conselhos práticos, Haidt parece simplificar a complexidade da mercantilização da identidade e da ausência de valores estáveis no ambiente digital. O "eu" moderno está preso a um ciclo de validação que é impulsionado por uma lógica mercantil, onde o valor de uma identidade é medido em curtidas e seguidores. Esse "eu" não tem a oportunidade de construir valores autênticos ou uma identidade sólida, pois sua existência depende de uma validação constante e fugaz.
Haidt não leva em consideração que a própria estrutura das redes sociais e da mídia digital está desenhada para manter o "eu" em um estado de incompletude. Esse "eu" nunca se fecha, nunca atinge um estado de satisfação, e isso gera uma lacuna no desenvolvimento de valores que poderiam proporcionar estabilidade emocional. Ao não questionar essa dinâmica, o autor perde a chance de explorar como o ambiente digital impede a construção de um "eu" autêntico, mantendo-o preso em um ciclo de validação que nunca se encerra.
6. A Comparação com a Inteligência Artificial e o Rebaixamento do Humano
Outro ponto que Haidt deixa de abordar é a forma como o ser humano moderno se compara até mesmo com a inteligência artificial, em um reflexo de sua "pequenez" diante da eficiência racional dessas tecnologias. No ambiente digital, onde o algoritmo dita o que é relevante e popular, o ser humano se vê reduzido a uma entidade que deve competir e se comparar até mesmo com a IA, que representa uma racionalidade sem emoções ou limitações. Esse rebaixamento do humano diante da tecnologia reflete uma insegurança profunda e uma crise de identidade que exacerba a ansiedade e o sentimento de inadequação.
A comparação com a inteligência artificial, assim como com influenciadores e modelos, coloca o ser humano em uma posição onde sua própria condição é questionada e desvalorizada. O autor não leva em conta que essa comparação constante, inclusive com inteligências que não possuem limitações humanas, agrava a insegurança e reforça a ideia de um "eu" sempre em débito com o ideal inalcançável promovido pelo ambiente digital.
7. Considerações Finais
Em resumo, a obra de Jonathan Haidt levanta questões relevantes sobre a geração ansiosa, mas falha em oferecer uma análise profunda sobre as dinâmicas complexas que moldam essa ansiedade no contexto contemporâneo. Ao focar em conselhos práticos, ele desconsidera a profundidade das questões materiais, culturais e tecnológicas que sustentam a experiência do "eu" moderno. A dependência tecnológica, o narcisismo digital, a ausência de valores estáveis e a comparação com a inteligência artificial são aspectos que demandam uma análise mais crítica e estrutural, e que não podem ser resolvidos com conselhos simplistas de desconexão.
A geração ansiosa não é apenas fruto das redes sociais, mas de uma economia que mercantiliza a identidade, de uma cultura que valoriza o engajamento superficial e de uma tecnologia que molda o ser humano a partir de padrões inatingíveis.
#maispertodaignorancia
@joseantoniolucindodasilva
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