Avançar para o conteúdo principal

A Ingenuidade da Confiança no Digital: Uma Crítica ao Suposto Problema da Geração IGEN com a Realidade


A Ingenuidade da Confiança no Digital: Uma Crítica ao Suposto Problema da Geração IGEN com a Realidade


Introdução: O Problema que Não é Problema

Vivemos em tempos onde tudo é motivo para uma grande preocupação coletiva. Um estudo, como o apresentado pela Common Sense Media, alerta para um novo “risco” social: os adolescentes não conseguem distinguir o que é real e o que é falso no ambiente digital. O problema, no entanto, não está na suposta incapacidade desses jovens, mas na própria natureza desse espaço discursivo, que nunca foi projetado para estabelecer uma verdade concreta. O mais curioso – e irônico – é que a preocupação com a confiança e a privacidade dentro das redes só existe porque essas redes precisam que continuemos confiando nelas o suficiente para não sair, mas desconfiando o suficiente para nos manter engajados.

Neste artigo, farei uma análise cética e irônica dessa questão, desmontando a ilusão vendida por essa reportagem. Mais do que um problema de discernimento, o que estamos vendo é uma contradição fundamental na relação entre sujeito, discurso e materialidade. Afinal, como esperar que um ambiente digital, que sobrevive da extração e manipulação de dados, possa ser um espaço de privacidade e confiança?

O Paradoxo da Confiança e a Ilusão da Privacidade

Antes de mais nada, vamos esclarecer uma questão óbvia: não existe privacidade na internet. Nunca existiu e nunca existirá, porque o modelo de negócio das big techs não permite isso. Se privacidade fosse um direito assegurado, o mercado digital colapsaria. Edward Snowden já mostrou isso ao revelar que os sistemas de vigilância já vêm embutidos nas máquinas desde sua fabricação. Como então a reportagem pode sugerir que os adolescentes têm um problema de confiança, se o próprio sistema é projetado para que não haja confiabilidade alguma?

A ilusão de privacidade e confiança é uma construção discursiva, e a sua função não é proteger os usuários, mas sim garantir que eles continuem interagindo. O paradoxo é que, ao mesmo tempo em que as pessoas exigem privacidade, elas continuam se expondo voluntariamente. O sujeito digital é, ao mesmo tempo, consumidor e produto, e a confiança que ele busca no sistema é a própria prova de que ele não compreende a lógica desse ambiente.

A confiança no digital não é um erro dos adolescentes. É um sintoma da própria arquitetura da discursividade digital, que precisa que a confiança seja sempre instável para que o engajamento continue.

O Problema da Geração IGEN: Fomos Treinados para a Desconfiança?

A geração IGEN – ou “G de Gilete, E de Elefante e N de Navio”, como ironizei anteriormente – vive um paradoxo ainda maior. Como apontado por Jean Twenge em IGEN: Why Today’s Super-Connected Kids Are Growing Up Less Rebellious, More Tolerant, Less Happy—and Completely Unprepared for Adulthood (2017), essa é a geração que cresceu dentro do digital e não consegue mais separar sua identidade da rede. Isso significa que eles já não buscam confiança no sentido tradicional, mas sim uma validação discursiva que os mantenha inseridos no fluxo da rede.

Isso nos leva a um ponto crucial: a confiança digital não é um problema técnico ou cognitivo, mas sim um problema existencial. A geração IGEN não sabe distinguir o real do falso não porque falte capacidade crítica, mas porque essa distinção já não faz mais sentido dentro da lógica algorítmica. No digital, a verdade não importa tanto quanto a funcionalidade do discurso.

Byung-Chul Han, em A Morte do Eros (2021), explica bem isso: vivemos em um sistema de demandas, não de desejos. Se antes as pessoas desejavam algo que não podiam ter, hoje o sistema entrega o que elas “precisam” antes mesmo que elas o desejem. O digital antecipa necessidades, dissolve contradições e elimina frustrações – e, sem frustração, não há construção subjetiva real.

Então, se essa geração busca confiança no digital, não é porque ela foi iludida, mas porque foi treinada para se manter dependente desse fluxo discursivo.

A Subjetividade Algorítmica: Quando o "Eu" se Torna Mercadoria

Aqui entramos no problema mais profundo: a subjetividade digital não é uma extensão da materialidade, mas uma construção artificial gerada pelo próprio sistema. E isso nos leva à questão levantada por Elisabeth Roudinesco sobre o "eu soberano", que busca validar sua existência sem precisar se confrontar com um outro real.

No passado, o confronto com o outro era fundamental para a construção do sujeito. Como Lacan afirmou, “o homem é o discurso do outro” – ou seja, só existimos porque há um outro que nos reconhece. Mas no ambiente digital, o outro foi substituído por um algoritmo que entrega exatamente aquilo que queremos ver. O que temos, então, não é um verdadeiro reconhecimento, mas um circuito fechado de autoafirmação, onde o sujeito só interage consigo mesmo, sem jamais se confrontar com uma alteridade real.

Se não há outro, não há conflito. Se não há conflito, não há desejo. Se não há desejo, não há subjetividade. O que resta é apenas uma identidade discursiva vazia, baseada na repetição e no engajamento.

Conclusão: 

A Ironia da Desconfiança como Recurso

No final das contas, a grande ironia dessa reportagem é que ela se preocupa com um problema que só existe porque o próprio sistema digital precisa que ele exista. A confiança é um produto dentro desse mercado. Quanto mais falamos sobre desconfiança e privacidade, mais damos dados para as big techs ajustarem seus algoritmos e nos manterem presos nesse jogo.

A questão que devemos fazer não é “como restaurar a confiança no digital?”, mas sim “por que ainda buscamos confiança em um espaço que não foi feito para isso?”.

O mais cômico é que essa desconfiança gera receita. A própria frustração das pessoas com o sistema gera mais dados, mais previsibilidade e mais engajamento. É o sistema perfeito: um que mantém as pessoas acreditando que há algo a resolver, quando, na realidade, não há nada além de um ciclo autorreferente que existe apenas para continuar existindo.

Se há algo para aprender com essa reportagem, é que não estamos diante de um problema de discernimento dos adolescentes. Estamos diante de uma geração que foi ensinada a confiar em algo que nunca ofereceu confiança, mas que, mesmo assim, precisa continuar buscando essa validação para existir.

E isso, meu caro leitor, é o mais puro retrato da alienação contemporânea.


Referências Bibliográficas

BYUNG-CHUL HAN – A Morte do Eros (2021)

EDGAR MORIN – O Método (1977)

ELISABETH ROUDINESCO – O Eu Soberano (2019)

ERNST BECKER – A Negação da Morte (1973)

JEAN TWENGE – IGEN (2017)

LACAN, Jacques – Escritos (1966)

SNOWDEN, Edward – Eternal Record (2019)


José Antônio Lucindo da Silva
CRP: 06/172551
joseantoniolcnd@gmail.com
#maispertodaignorancia

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

Eu, o algoritmo que me olha no espelho

  Eu, o algoritmo que me olha no espelho Um ensaio irônico sobre desejo, ansiedade e inteligência artificial na era do desempenho Escrevo este texto com a suspeita de que você, leitor, talvez seja um algoritmo. Não por paranoia tecnofóbica, mas por constatação existencial: hoje em dia, até a leitura se tornou um dado. Se você chegou até aqui, meus parabéns: já foi computado. Aliás, não é curioso que um dos gestos mais humanos que me restam — escrever — também seja um dos mais monitorados? Talvez eu esteja escrevendo para ser indexado. Talvez eu seja um sintoma, uma falha de sistema que insiste em se perguntar: quem sou eu, senão esse desejo algorítmico de ser relevante? Não, eu não estou em crise com a tecnologia. Isso seria romântico demais. Estou em crise comigo mesmo, com esse "eu" que performa diante de um espelho que não reflete mais imagem, mas sim dados, métricas, curtidas, engajamentos. A pergunta não é se a IA vai me substituir. A pergunta é: o que fiz com meu desejo...

Eu, um produto descartável na prateleira do mercado discursivo

Eu, um produto descartável na prateleira do mercado discursivo Introdução: A Farsa da Liberdade na Sociedade Digital Ah, que tempos maravilhosos para se viver! Nunca estivemos tão livres, tão plenos, tão donos do nosso próprio destino – pelo menos é o que os gurus da autoajuda e os coachs do Instagram querem nos fazer acreditar. Afinal, estamos todos aqui, brilhando no feed infinito, consumindo discursos pré-moldados e vendendo nossas identidades digitais como se fossem produtos de supermercado. E o melhor de tudo? A ilusão da escolha. Podemos ser quem quisermos, desde que esse "eu" seja comercializável, engajável e rentável para os algoritmos que regem essa bela distopia do século XXI. Se Freud estivesse vivo, talvez revisitasse O Mal-Estar na Civilização (1930) e reescrevesse tudo, atualizando sua teoria do recalque para algo mais... contemporâneo. Afinal, hoje não reprimimos nada – muito pelo contrário. Estamos todos em um estado de hiperexpressão, gritando par...