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Setembro Amarelo na era do feed infinito: entre o mal-estar pós-moderno e a escuta que falta

Setembro Amarelo na era do feed infinito: entre o mal-estar pós-moderno e a escuta que falta Pode ser o pica das técnicas, o bam-bam-bam do pedaço, mas na hora de ouvir outro humano, seja só humano com humano. Todo setembro, fitinhas amarelas se multiplicam em posts, slogans e hashtags. A intenção é legítima: falar de suicídio, quebrar tabu, incentivar prevenção. Mas, como lembraria Bauman, vivemos a pós-modernidade líquida, em que símbolos são frágeis e campanhas viram consumo. A fitinha vira filtro no Instagram, o sofrimento vira dado para o algoritmo. O que deveria ser espaço de escuta vira espetáculo moralizante. Enquanto isso, na vida concreta, existe quem atravessa crises epilépticas e transtornos bipolares, perde dias de memória, volta dizendo “acordei na geleia, irmão… não tinha nada lá”. Não é tentativa de suicídio, não é “falta de fé”, é corpo que se apaga involuntariamente. O DSM-5 e a CID-11 reconhecem condições biológicas que podem levar a comportamentos auto-l...

Não tem nada lá? — viver, negar a morte e segurar o outro no feed

Não tem nada lá? — viver, negar a morte e segurar o outro no feed Pode ser o bam-bam-bam da técnica, o pica da galáxia dos diplomas, o mestre dos algoritmos. Mas se você não encostar no outro, se não for humano com humano, todo esse conhecimento é só ego rodando feed. Ernest Becker, em A Negação da Morte , dizia que passamos a vida montando “projetos de imortalidade”: carreiras, templos, famílias, redes sociais — tudo para não encarar a finitude. Aristóteles lembrava que o tempo não é coisa, é medida do movimento: cada instante é um limite entre antes e depois. Kierkegaard alertava: a angústia não é medo de algo, é o nada se abrindo diante da liberdade. Cioran foi além: até os projetos de imortalidade se decompõem, sobra apenas o cume do desespero. Platão já tinha encenado isso no mito da caverna: o sujeito vê o real, volta, tenta contar e sofre o “auto suicídio social” — não porque quer, mas porque ninguém quer ouvir. Nosso paciente não é Neo: não tem Morpheus, nem tr...

Despertar sem Morpheus: duas realidades, um corpo só

Despertar sem Morpheus: duas realidades, um corpo só Pode ser o mestre dos algoritmos, o hacker das métricas, o doutor dos diplomas. Mas se não tiver outro humano para te apresentar ao mundo quando você volta do “coma da existência”, você continua perdido no código. Há pessoas que passam por crises tão intensas — convulsões, episódios bipolares, estados de inconsciência — que é como atravessar para o “lado de fora da Matrix” sem ter um Morpheus esperando. Elas voltam para o corpo, mas não têm manual. Têm linguagem, mas a linguagem não encaixa no que o corpo viveu. Isso não é drama nem falta de vontade: é anatomia, neuroquímica, psique. É o que Freud chamou de trauma — uma experiência bruta, sem filtro, que retorna no corpo e no medo. Esse paciente vive exatamente essa duplicidade. De um lado, uma realidade que ele não pode simbolizar: crises, apagões, experiências de inconsciência que marcam o corpo antes que a palavra possa chegar. De outro, uma realidade consciente, onde ...

O cheiro do limite: quando Alzheimer, olfato e pandemia desafiam o mito da idade

O cheiro do limite: quando Alzheimer, olfato e pandemia desafiam o mito da idade (São Paulo, 14/09/2025) A reportagem da Folha de S.Paulo (2025) apresenta a perda de olfato como marcador precoce para Alzheimer, mas o faz como se se tratasse de um sintoma de idosos. Sem declarar explicitamente, sugere uma “medida etária” implícita: rastrear cheiros apenas quando a velhice já chegou. É um enquadramento estatisticamente conveniente, que coloca a doença dentro de uma cronologia previsível. Mas essa cronologia não é universal. O próprio estudo citado pela Folha – publicado na Nature Communications – não limita seus achados a idosos. Ele mostra que a degeneração precoce dos axônios noradrenérgicos do locus coeruleus no bulbo olfatório, acompanhada de ativação de microglia, antecede os déficits cognitivos (WU et al., 2025). Isso desloca a discussão do “sintoma periférico” para o “marcador central”: o olfato falha antes da memória. Metanálises recentes reforçam que declínios sutis ...

Quando uma borboleta bate asas, o caos escreve poesia

Quando uma borboleta bate asas, o caos escreve poesia 08/09/2025 — 07h32 (America/Sao_Paulo) O chamado efeito borboleta nasceu em 1963, quando Edward Lorenz, matemático e meteorologista, percebeu que mudar o valor de uma variável de 0,506127 para 0,506 alterava radicalmente o resultado de uma simulação atmosférica. Essa diferença mínima gerou previsões completamente distintas. Nascia ali uma das metáforas mais duradouras da ciência contemporânea. Parte da teoria do caos, o conceito mostra que sistemas determinísticos — como o clima, o coração humano ou os fluxos econômicos — podem ser, paradoxalmente, imprevisíveis. Não porque sejam aleatórios, mas porque são sensíveis às condições iniciais . Uma pequena oscilação de temperatura, um rumor no mercado, uma palavra mal-dita: tudo pode amplificar-se de forma desproporcional. A cultura popular reduziu essa ideia à imagem cinematográfica da borboleta no Brasil que provoca um tornado no Texas. Mas o que está em jogo não é a f...

O Outro que Não Está na Tela: Suicídio, Algoritmos e a Falência da Alteridade

O Outro que Não Está na Tela: Suicídio, Algoritmos e a Falência da Alteridade 09/08/2025 · 10h30 (America/Sao_Paulo) Vivemos um paradoxo silencioso: nunca tivemos tantos “outros” disponíveis ao alcance de um clique e, ao mesmo tempo, nunca estivemos tão distantes da experiência real da alteridade. Essa tensão se mostra decisiva quando pensamos o suicídio em tempos digitais. A questão já não é apenas “quem sou eu?”, mas “com quem eu falo quando digito na tela?”. No campo material, restrito, palpável — família, escola, trabalho, vizinhança — o eu se reconhece porque encontra limites. O olhar do colega, a reprovação de um professor, o desentendimento com um vizinho, a frustração de uma relação amorosa: tudo isso constitui uma trama de contrariedades que sustentam o sujeito. Freud já apontava que é pelo recalque — aqui traduzido como limite — que o eu aprende a lidar com a realidade. Winnicott acrescentaria que é o ambiente suficientemente bom, com frustração e acolhimento, qu...

Entre o eu e o reflexo: quando a máquina finge ser o outro

Entre o eu e o reflexo: quando a máquina finge ser o outro 📅 08/09/2025 · 11h15 (America/Sao_Paulo) A cada Setembro Amarelo, o discurso se repete: precisamos falar de saúde mental. Mas algo muda silenciosamente — e talvez de forma mais radical do que supomos. O Correio Braziliense alerta: “Terapia com ChatGPT: os riscos da inteligência artificial na saúde mental”. O Conselho Federal de Psicologia já havia soltado nota semelhante: chatbot não é psicoterapia. Tudo certo, mas talvez não seja suficiente. O verdadeiro problema não é apenas se um algoritmo funciona como terapia, mas se nós aceitamos a ideia de que uma máquina pode substituir o outro humano. Porque o setting analítico — seja no divã, seja em qualquer prática clínica — não se reduz a perguntas e respostas. Ele envolve silêncio, pausa, confronto, até o desconforto. É no rosto a rosto, no corpo a corpo, que o eu se vê diante de sua própria contradição. O algoritmo, por mais sofisticado, não contradiz de verdade. Ele...