O cheiro do limite: quando Alzheimer, olfato e pandemia desafiam o mito da idade
(São Paulo, 14/09/2025)
A reportagem da Folha de S.Paulo (2025) apresenta a perda de olfato como marcador precoce para Alzheimer, mas o faz como se se tratasse de um sintoma de idosos. Sem declarar explicitamente, sugere uma “medida etária” implícita: rastrear cheiros apenas quando a velhice já chegou. É um enquadramento estatisticamente conveniente, que coloca a doença dentro de uma cronologia previsível. Mas essa cronologia não é universal.
O próprio estudo citado pela Folha – publicado na Nature Communications – não limita seus achados a idosos. Ele mostra que a degeneração precoce dos axônios noradrenérgicos do locus coeruleus no bulbo olfatório, acompanhada de ativação de microglia, antecede os déficits cognitivos (WU et al., 2025). Isso desloca a discussão do “sintoma periférico” para o “marcador central”: o olfato falha antes da memória. Metanálises recentes reforçam que declínios sutis no olfato predizem risco aumentado de demência em até 10 anos (BOND et al., 2025). Mas nada disso autoriza um recorte etário rígido.
É aqui que Joseph Jebelli, em Em busca da memória (2017), se torna fundamental não como “certeza” mas como paralelo disruptivo. Ao narrar famílias da Colômbia (Antioquia) e da Venezuela portadoras de mutações como PSEN1 E280A, Jebelli mostra que os sintomas do Alzheimer podem começar antes dos 50 – e, em alguns casos, antes dos 40. Essas populações participam hoje de ensaios preventivos internacionais porque biomarcadores e sintomas aparecem mais de uma década antes do esperado. O livro não oferece uma fórmula universal; ele desmonta o mito universalista que a reportagem da Folha reforça.
O mesmo vale para o Parkinson: mutações em PRKN, PINK1, LRRK2 e GBA em populações latino-americanas estão associadas a início mais precoce (LARGE-PD Consortium, 2024). Em outras palavras: no sul global, a doença desafia os cronogramas importados do norte global. Protocolos construídos sobre médias etárias “do mundo desenvolvido” deixam de fora quem mais precisaria de vigilância precoce. Limitar rastreamento a idosos no Brasil ou na América do Sul é perpetuar um mito estatístico que invisibiliza famílias inteiras.
Outra dimensão ignorada pela Folha é a mudança do odor corporal no envelhecimento – tanto em sua emissão quanto na capacidade de o indivíduo percebê-lo. Pesquisas de química analítica mostram que o composto 2-nonenal surge nas secreções cutâneas de pessoas a partir dos 40 anos, alterando qualitativamente o “cheiro” do corpo (HAZE et al., 2001). Mitro et al. (2012) confirmaram que humanos discriminam odores corporais de pessoas idosas versus jovens, implicando mudanças químicas e perceptivas com a idade. Essa perda de “referência olfativa interna” não é mero detalhe: ela compromete a capacidade do idoso de perceber alterações do próprio corpo, e interfere na validade de testes olfativos padronizados que assumem um ponto de partida neutro.
Para analisar com rigidez esse confronto, é útil verificar o que dizem as normas neurológicas / psiquiátricas / geriátricas. No Brasil, o Guidelines for the use and interpretation of Alzheimer’s disease biomarkers – Departamento de Neurologia Cognitiva e Envelhecimento da Academia Brasileira de Neurologia (2024) – reconhece o Alzheimer como um contínuo, com estágios pré-clínicos, sem necessidade de sintomas cognitivos plenos para adotar certas intervenções em pesquisa. Esse documento sugere que biomarcadores (imagens, fluido cerebral/plasma) podem identificar doença antes da manifestação clínica, inclusive em indivíduos mais jovens – embora ainda não haja recomendação para rastreio populacional fora de protocolos. Os critérios revisados da Alzheimer’s Association (2024) ampliam a noção de diagnóstico baseado em biomarcadores (plasma, PET, análises de proteína tau/Aβ) e consideram que alterações biológicas podem preceder sintomas clínicos substanciais independentemente da idade cronológica. Santillán-Morales et al. (2024) discutem precisamente se alterações olfativas neuronais podem ser consideradas biomarcadores para o processo patofisiológico do Alzheimer, concluindo que, embora promissoras, não devem ser usadas isoladamente como diagnóstico – especialmente devido à variabilidade entre indivíduos e populações.
E há ainda um fator histórico e psíquico que a Folha trata como detalhe técnico: a pandemia de COVID-19. No artigo, a infecção aparece apenas como “viés” a ser descartado para isolar o Alzheimer. Mas, em O trauma na pandemia do coronavírus (2021), Joel Birman mostra que a pandemia não é um ruído estatístico; é um evento traumático de massa que atravessou corpo, memória, percepção e subjetividade. O contágio, o isolamento, a medicalização do risco e a experiência do medo alteraram profundamente o tecido psíquico e social. Nesse contexto, a perda de olfato não é apenas um marcador biológico: é também uma inscrição traumática coletiva, que muda a relação do sujeito com o seu corpo e com o mundo. Ignorar essa dimensão – reduzindo a COVID a um “confusor” do teste – é perder de vista a condição histórica que reconfigura tanto a biologia quanto a subjetividade do olfato.
Por isso, a proposta de usar perda olfativa como biomarcador precisa ser repensada. Em vez de um instrumento exclusivo de triagem em idosos, deveria ser um gatilho clínico amplo, aplicado também em indivíduos jovens com história familiar, exposição a ambientes de risco ou efeitos de traumas coletivos. No Brasil e países vizinhos, versões adaptadas do UPSIT e do Sniffin’ Sticks já existem, com normas por idade e sexo (SANTOS et al., 2023). Um fluxo possível seria combinar: (1) teste olfatório padronizado; (2) check-list de confusores (COVID, tabaco, sinusite, fármacos); (3) triagem cognitiva breve (MoCA/RUDAS) e (4) encaminhar casos suspeitos – independentemente de idade – para avaliação neurológica, com biomarcadores plasmáticos e imagem. Acompanhamentos longitudinais (5–10 anos) poderiam medir taxa de declínio olfativo, não só nível absoluto, incorporando também a avaliação do odor corporal como possível marcador adicional.
Do ponto de vista de pesquisa, três linhas despontam: (a) biomarcador composto – olfato + p-tau-217 no plasma + volumetria cortical para aumentar a acurácia preditiva; (b) neuroimagem de alto campo do locus coeruleus com traçadores PET noradrenérgicos, para mapear a progressão em vida; (c) modulação da microglia como alvo terapêutico precoce, avaliando o olfato como “endpoint sensível”. Em paralelo, urge padronizar protocolos pós-COVID para diferenciar disfunção olfatória persistente de trajetória neurodegenerativa, inclusive testando treinamento olfativo como controle ativo.
A Folha acerta ao dar visibilidade ao marcador olfativo, mas erra ao apresentá-lo como se fosse naturalmente restrito a idosos. Ao não apresentar variáveis genéticas, ambientais, corporais e traumáticas – já bem documentadas por Jebelli, Birman e pela literatura biomédica latino-americana – a matéria reforça um viés etário que pode atrasar diagnósticos e excluir populações inteiras do debate. A idade não é determinante: é uma variável. No contexto do Alzheimer, isso não é detalhe metodológico; é uma questão ética de acesso a triagem e cuidado. O olfato, como memória do corpo, é atravessado por genes, envelhecimento, pandemias e trauma. Reduzi-lo a marcador geriátrico é trair a complexidade do fenômeno.
Referências
BOND, A. et al. Olfactory impairment and risk of dementia: a meta-analysis. Alzheimer’s & Dementia, 2025.
BIRMAN, J. O trauma na pandemia do coronavírus. 1ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.
HAZE, S. et al. 2-Nonenal newly found in human body odor tends to increase with aging. Journal of Investigative Dermatology, 2001.
JEBELLI, J. Em busca da memória: uma biografia da doença de Alzheimer, da sua descoberta às novas técnicas de cura. Trad. Luis Reyes Gil. São Paulo: Crítica, 2017.
LARGE-PD Consortium. Genetic architecture of early-onset Parkinson’s disease in Latin America. Movement Disorders, 2024.
MARTINS, P. et al. Plasma biomarkers and olfactory decline in mild cognitive impairment. Journal of Alzheimer’s Disease, 2024.
MITRO, S. et al. Perception and Discrimination of Body Odors of Different Ages. PLOS ONE, 2012.
SANTILLÁN-MORALES, L. et al. Biomarkers in Alzheimer’s Disease: Are Olfactory Neuronal Changes Useful? Brain Sciences, 2024.
SANTOS, R. et al. Validação brasileira do UPSIT para rastreio de disfunção olfatória. Revista Brasileira de Geriatria & Gerontologia, 2023.
WU, H. et al. Early Locus Coeruleus noradrenergic axon loss drives olfactory dysfunction in Alzheimer’s Disease. Nature Communications, 2025.
FOLHA DE S.PAULO. Perda de olfato pode ajudar a identificar casos precoces de Alzheimer, aponta estudo. São Paulo, 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2025/09/perda-de-olfato-pode-ajudar-a-identificar-casos-precoces-de-alzheimer-aponta-estudo.shtml. Acesso em: 14 set. 2025.
Nota do autor (MPI):
Este texto integra a linha crítica do “Mais Perto da Ignorância” e não prescreve condutas médicas; pretende iluminar as tensões entre biologia, clínica, sociedade e trauma. A perda de olfato pode ser um marcador precoce, mas não um diagnóstico nem exclusivo de idosos.
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