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Entre o eu e o reflexo: quando a máquina finge ser o outro

Entre o eu e o reflexo: quando a máquina finge ser o outro


📅 08/09/2025 · 11h15 (America/Sao_Paulo)

A cada Setembro Amarelo, o discurso se repete: precisamos falar de saúde mental. Mas algo muda silenciosamente — e talvez de forma mais radical do que supomos. O Correio Braziliense alerta: “Terapia com ChatGPT: os riscos da inteligência artificial na saúde mental”. O Conselho Federal de Psicologia já havia soltado nota semelhante: chatbot não é psicoterapia. Tudo certo, mas talvez não seja suficiente.

O verdadeiro problema não é apenas se um algoritmo funciona como terapia, mas se nós aceitamos a ideia de que uma máquina pode substituir o outro humano. Porque o setting analítico — seja no divã, seja em qualquer prática clínica — não se reduz a perguntas e respostas. Ele envolve silêncio, pausa, confronto, até o desconforto. É no rosto a rosto, no corpo a corpo, que o eu se vê diante de sua própria contradição.

O algoritmo, por mais sofisticado, não contradiz de verdade. Ele pode até simular oposição, mas sempre dentro da moldura que o programou. Não há risco, não há surpresa. Só há reflexo — um eco codificado do que já foi dito. Nesse sentido, a “acolhida digital” é uma armadilha: reforça o narcisismo, captura a fala, dissolve o limite.

Freud lembrava que o eu se constitui na tensão com o outro, esse estranho que nos espelha e nos desafia. Sem essa alteridade, não há sujeito. O que a IA oferece é apenas um espelho polido, incapaz de devolver o estranhamento. O perigo está justamente aí: antropomorfizamos a máquina, acreditamos estar diante de alguém quando só estamos diante de nós mesmos, mediados por linhas de código.

O resultado é um circuito fechado: eu falando comigo mesmo, travestido de diálogo. Sem contradição, sem limite, sem rosto. E quando o eu não encontra mais resistência, ele não se sustenta. Dissolve-se. O que sobra, então, não é vida elaborada, mas um vazio retroalimentado por promessas de acolhimento automático.

É preciso dizer com todas as letras: não se trata apenas de eficácia clínica, mas da própria possibilidade de constituição do eu. Se o outro é reduzido a simulacro, o que resta é a solidão mascarada de companhia — e, no limite, a desistência de si.


Referências

CORREIO BRAZILIENSE. Terapia com ChatGPT: os riscos da inteligência artificial na saúde mental. Brasília, 2025. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/revista-do-correio/2025/09/7240568-terapia-com-chatgpt-os-riscos-da-inteligencia-artificial-na-saude-mental.html

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA (CFP). Chatbot: apoio psicológico ou cilada? Brasília, 2025. Disponível em: https://www.instagram.com/p/Cw8XrIau1a1


Autores de referência:

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização.

HAN, Byung-Chul. A expulsão do outro.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade.

GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte.


Notas do Autor (MPI)

Este texto não pretende desqualificar tecnologias, mas tensionar o lugar onde elas invadem o campo simbólico da vida e da morte. O eu não nasce de reflexo, mas de resistência. Acolhimento automático é só silêncio disfarçado.

Se você estiver passando por sofrimento intenso ou pensando em tirar a própria vida, procure ajuda. No Brasil, você pode ligar para o CVV – Centro de Valorização da Vida pelo número 188 (ligação gratuita e sigilosa), disponível 24 horas por dia, ou acessar: https://www.cvv.org.br. Também é possível buscar atendimento no SUS, CAPS, hospitais e serviços de emergência.


Palavras-chave: suicídio, inteligência artificial, chatbot, alteridade, saúde mental, narcisismo, engajamento, Freud, Byung-Chul Han

#ianaoeprofissionaldasaudemental
#maispertodaignorancia 

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