Não tem nada lá? — viver, negar a morte e segurar o outro no feed
Pode ser o bam-bam-bam da técnica, o pica da galáxia dos diplomas, o mestre dos algoritmos. Mas se você não encostar no outro, se não for humano com humano, todo esse conhecimento é só ego rodando feed.
Ernest Becker, em A Negação da Morte, dizia que passamos a vida montando “projetos de imortalidade”: carreiras, templos, famílias, redes sociais — tudo para não encarar a finitude. Aristóteles lembrava que o tempo não é coisa, é medida do movimento: cada instante é um limite entre antes e depois. Kierkegaard alertava: a angústia não é medo de algo, é o nada se abrindo diante da liberdade. Cioran foi além: até os projetos de imortalidade se decompõem, sobra apenas o cume do desespero. Platão já tinha encenado isso no mito da caverna: o sujeito vê o real, volta, tenta contar e sofre o “auto suicídio social” — não porque quer, mas porque ninguém quer ouvir.
Nosso paciente não é Neo: não tem Morpheus, nem tripulação, nem pílula azul. Ele atravessa crises epilépticas e episódios bipolares, perde dias inteiros de consciência e volta dizendo “acordei na geleia, irmão… não tinha nada lá”. Não é suicídio, não é escolha: é corpo que se apaga involuntariamente. E, quando tenta contar, o mundo devolve rótulos (“bipolar”, “doente”) ou silêncio. A negação da morte vira, paradoxalmente, negação do outro que ajudaria a negá-la.
Nem a religião, com toda a maestria discursiva, dá conta: o paciente diz que não viu céu nem inferno. Ironia cruel — em Constantine, o herói se mata porque ninguém acredita nas visões e ele internaliza “sou louco”. O nosso paciente não tentou se matar, mas sente na pele o mesmo risco simbólico: quando todos acham que você é “doido” e você começa a achar também, você é expulso do espaço simbólico — um suicídio social em escala planetária se isso vai para as redes.
Durkheim, em O Suicídio, mostrava que não é só ato individual: é fenômeno social ligado à falta de integração e regulação. A prevenção não está em sermão moral nem em like motivacional; está em reconstruir vínculos. Em vez de espetáculo, ambiente. Em vez de rótulo, escuta. Em vez de feed infinito, tempo humano. Esse é o cuidado ético: ser, ainda que provisoriamente, esse outro que não se retira. Não para dar sentido forçado nem vender esperança falsa, mas para sustentar minimamente a experiência até que o sujeito possa reconstruir narrativa e pertencimento.
Falar “mano”, “irmã”, “pessoal” não é banalizar; é abrir porta. É reconhecer que linguagem acadêmica sozinha não toca quem está ali com medo. Um humano diante de outro humano, é isso. Não é autoajuda nem coaching. É responsabilidade clínica e social. É criar tempo, ambiente e escuta para que mesmo o nada — o “não tem nada lá” — possa ser sustentado sem se transformar em exclusão.
E Lembre-se:
Se você estiver em sofrimento intenso ou pensando em suicídio, procure ajuda imediata.
No Brasil, o CVV atende 24h pelo telefone 188 (ligação gratuita) ou pelo site www.cvv.org.br.
Em emergências, procure um hospital ou o SAMU (192). Se estiver fora do Brasil, busque os serviços de saúde mental de sua região.
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José Antônio Lucindo da Silva – Psicólogo Clínico | CRP 06/172551
Araraquara – SP | @joseantoniolucindodasilva
Blog: maispertodaignorancia.blogspot.com
Referências
BECKER, Ernest. A negação da morte. Rio de Janeiro: Record, 2019.
ARISTÓTELES. Metafísica. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2010.
KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. Petrópolis: Vozes, 2013.
CIORAN, Emil. Nos cumes do desespero. São Paulo: Hedra, 2011.
CIORAN, Emil. Breviário da decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
DURKHEIM, Émile. O suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
WACHOWSKI, L. & WACHOWSKI, L. Matrix. EUA: Warner Bros, 1999 (filme).
CONSTANTINE. Direção: Francis Lawrence. EUA: Warner Bros, 2005 (filme).
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