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Despertar sem Morpheus: duas realidades, um corpo só

Despertar sem Morpheus: duas realidades, um corpo só


Pode ser o mestre dos algoritmos, o hacker das métricas, o doutor dos diplomas. Mas se não tiver outro humano para te apresentar ao mundo quando você volta do “coma da existência”, você continua perdido no código.



Há pessoas que passam por crises tão intensas — convulsões, episódios bipolares, estados de inconsciência — que é como atravessar para o “lado de fora da Matrix” sem ter um Morpheus esperando. Elas voltam para o corpo, mas não têm manual. Têm linguagem, mas a linguagem não encaixa no que o corpo viveu. Isso não é drama nem falta de vontade: é anatomia, neuroquímica, psique. É o que Freud chamou de trauma — uma experiência bruta, sem filtro, que retorna no corpo e no medo.

Esse paciente vive exatamente essa duplicidade. De um lado, uma realidade que ele não pode simbolizar: crises, apagões, experiências de inconsciência que marcam o corpo antes que a palavra possa chegar. De outro, uma realidade consciente, onde ele sabe do diagnóstico, percebe os desequilíbrios, sente o afastamento e o olhar desconfiado: “ele é bipolar”, “ele é doente”, “cuidado”. Duas realidades coexistem: uma sem linguagem, outra com linguagem mas cheia de medo e estigma.

Não é apenas sofrimento psíquico; é também corpo. A epilepsia e o transtorno bipolar não são escolhas. São condições que atravessam redes neurais, hormônios, impulsos, sono, sensibilidade à luz, ao barulho, ao calor. A medicação protege e salva vidas, mas pode evidenciar sintomas, gerar efeitos colaterais, desgastar relações. O ambiente, a família, a rede de apoio tornam-se cruciais. Sem pais vivos, sem uma “figura Morpheus” ao lado, ele tenta se sustentar só com o discurso, mas o discurso não basta.

Spinoza chamava de conatus o esforço de existir. Mesmo sem Morpheus, há um eu discursivo tentando sobreviver, pedindo reconhecimento, dizendo “eu ainda estou aqui”. O problema é que, muitas vezes, o entorno responde pouco ou responde com estigma. O indivíduo passa a ser visto apenas como “o doente” ou “o medicado” e perde, junto com seus sintomas, a possibilidade de ser reconhecido como sujeito.

O cuidado ético não é dar uma pílula azul ou vermelha; é oferecer presença, tempo, ambiente. Um humano diante de outro humano. É escutar o sintoma como sinal de vida e não apenas dado clínico. É reconhecer que cada fala é uma tentativa de existir apesar do corpo vulnerável. E é também orientar familiares e redes para que medo e preconceito não afastem ainda mais.

Não se trata de coaching nem de autoajuda. Trata-se de psique, corpo, cultura e ética. É reconhecer que, quando alguém volta de um lugar sem linguagem, precisa de escuta, não de espetáculo. Precisa de vínculo, não de rótulo. Precisa de ambiente suficientemente bom para que sua narratividade encontre espaço e seu conatus não se dissolva.


Lembre-se:

Se você estiver em sofrimento intenso ou pensando em suicídio, procure ajuda imediata.
No Brasil, o CVV atende 24h pelo telefone 188 (ligação gratuita) ou pelo site www.cvv.org.br.
Em emergências, procure um hospital ou o SAMU (192). Se estiver fora do Brasil, busque os serviços de saúde mental de sua região.

#maispertodaignorancia
#ianaoeprofissionaldasaudemental

José Antônio Lucindo da Silva – Psicólogo Clínico | CRP 06/172551
Araraquara – SP | @joseantoniolucindodasilva
Blog: maispertodaignorancia.blogspot.com


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