O Outro que Não Está na Tela: Suicídio, Algoritmos e a Falência da Alteridade
09/08/2025 · 10h30 (America/Sao_Paulo)
Vivemos um paradoxo silencioso: nunca tivemos tantos “outros” disponíveis ao alcance de um clique e, ao mesmo tempo, nunca estivemos tão distantes da experiência real da alteridade. Essa tensão se mostra decisiva quando pensamos o suicídio em tempos digitais. A questão já não é apenas “quem sou eu?”, mas “com quem eu falo quando digito na tela?”.
No campo material, restrito, palpável — família, escola, trabalho, vizinhança — o eu se reconhece porque encontra limites. O olhar do colega, a reprovação de um professor, o desentendimento com um vizinho, a frustração de uma relação amorosa: tudo isso constitui uma trama de contrariedades que sustentam o sujeito. Freud já apontava que é pelo recalque — aqui traduzido como limite — que o eu aprende a lidar com a realidade. Winnicott acrescentaria que é o ambiente suficientemente bom, com frustração e acolhimento, que possibilita o amadurecimento. Nesse espaço restrito, ainda há sustentação para o eu.
No campo digital, a promessa é outra: abertura infinita, acesso ilimitado, rede global de interlocutores. Mas o efeito é o oposto. O algoritmo não nos oferece diferença, mas repetição. O feed de redes sociais, o chatbot que responde com base em nossos próprios enunciados, a comunidade que apenas reforça nossas preferências: tudo converge para um circuito de confirmações. Byung-Chul Han já alertava que vivemos uma “sociedade da positividade”, na qual a diferença — o contraditório — é suprimida em nome de um excesso de igualdades. O sujeito encontra sempre versões de si mesmo, ecoadas em palavras pré-formatadas.
É nesse contexto que o suicídio digitalmente mediado ganha contornos inéditos. Não se trata apenas de uma dor subjetiva que encontra vazão, mas de uma impossibilidade estrutural: não há outro real capaz de sustentar o eu. A criança que recebe um celular aos dois anos de idade já se constitui dentro dessa lógica de eco, sem aprender que a contradição é o que dá forma ao desejo. O adolescente que expõe sua dor na rede encontra curtidas e comentários, mas não encontra um limite concreto que lhe devolva a diferença. O adulto que conversa com um chatbot busca uma presença, mas encontra apenas reflexo.
Durkheim, ao definir o suicídio como um fato social, não poderia prever que chegaria o tempo em que o próprio “fato social” seria mediado por códigos. Ainda assim, sua intuição permanece válida: o suicídio revela sempre uma falência das integrações coletivas. Hoje, essa falência se traduz na colonização da palavra. Lacan dizia que o homem é feito de discurso; mas se o discurso já não pertence ao sujeito — porque foi capturado, moldado e redistribuído pelos algoritmos —, o que resta para sustentar o eu?
A mentira vital de Becker — aquela ilusão necessária que nos protege da angústia da morte — também se torna precária. Antes, a religião, a arte e a cultura forneciam narrativas que davam coesão. Hoje, é o chatbot que se oferece como companhia, como eco vazio, como falsa transcendência. Mas a diferença é crucial: o chatbot não sabe morrer, e portanto não pode nos ensinar a viver.
O resultado é uma armadilha discursiva: o sujeito digita esperando encontrar um outro, mas só encontra o espelho de si mesmo. Sem contrariedade, não há sustentação. Sem sustentação, o eu se desfaz. O suicídio, nesse cenário, não é apenas a morte de um corpo desejante, mas também a morte de um discurso que nunca encontrou resistência. O fim do desespero coincide com o fim do recalque, porque o recalque — ou limite — já não existe.
Essa falência da alteridade nos obriga a repensar o lugar do cuidado. Não basta oferecer campanhas genéricas ou slogans motivacionais. É preciso reconstruir espaços de encontro real, onde a contradição não seja eliminada, mas acolhida. Como lembrava Kierkegaard, a angústia é a vertigem da liberdade. Mas essa liberdade só existe se houver outro que nos devolva a estranheza de nós mesmos.
Se o eu já não sabe quem é, porque não encontra diferença que o sustente, o que resta é um campo colonizado pela insegurança, pelo engajamento e pela comparação. O algoritmo promete companhia, mas entrega apenas solidão multiplicada. É nesse vazio que o suicídio emerge como o grito último de uma subjetividade que nunca encontrou resistência suficiente para se constituir.
Referências
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização.
WINNICOTT, Donald. O brincar e a realidade.
DURKHEIM, Émile. O suicídio.
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço; A expulsão do outro.
BECKER, Ernest. A negação da morte.
KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia.
LACAN, Jacques. Escritos selecionados.
Notas do Autor (MPI)
Não se trata de salvar a imagem da tecnologia ou demonizá-la. O que está em jogo é mais grave: a própria falência do eu quando já não existe um outro que sustente sua existência. O chatbot não é culpado nem salvador. É apenas sintoma de uma época em que a alteridade foi terceirizada para códigos.
🔑 Palavras-chave
suicídio; algoritmos; discurso; alteridade; infância digital; ansiedade; engajamento; contradição
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