Suicídio Algorítmico: estatística, infância sequestrada e a falência civilizatória
O suicídio nunca foi apenas um ato individual. Durkheim já dizia que se trata de um “fato social”, reflexo da fragilidade ou da força dos laços que sustentam a vida. O problema é que, em pleno século XXI, os laços não desapareceram: multiplicaram-se em telas, mas tornaram-se líquidos, descartáveis, descartados antes mesmo de se tornarem vínculos. O que temos não é ausência de conexão, mas excesso de conexões frágeis — e é nesse paradoxo que o sujeito implode.
O discurso do Setembro Amarelo parece trazer alívio: estatísticas, campanhas, números organizados. Mas como Freud advertiu em O mal-estar na civilização, cada cultura gera seu próprio sintoma. O que chamamos de “conscientização” talvez seja apenas a captura mercadológica do sofrimento. A depressão virou identidade discursiva; o suicídio, dado performativo. Surge a dúvida incômoda: criamos sintomas para justificar remédios ou criamos remédios para fabricar sintomas? Não é coincidência que a medicalização da vida avance na mesma medida em que se dissolvem hábitos e costumes que sustentavam a narrativa coletiva.
A infância, nesse cenário, não escapa. Winnicott via no silêncio e no “objeto transicional” a base para a maturidade psíquica. Klein apontava na posição depressiva — e na elaboração da culpa — o início da reparação. Hoje, esse tempo foi sequestrado pelo algoritmo. A criança já não espera, já não suporta a ausência, já não elabora a culpa. O celular funciona como “babá digital”, mas não há alteridade nele. Diferente de uma babá de carne e osso, que introduz limite e contrariedade, a tela só devolve ondas de prazer e captura de dados, como mostrou Zuboff em A Era do Capitalismo de Vigilância. Até o silêncio do infante gera informação, transformada em estatística para retroalimentar o mercado.
Não se trata de simples omissão dos pais ou impotência do Estado. Trata-se de cumplicidade estrutural: família, escola e políticas públicas entregam a formação do eu ao mercado digital. O “ambiente suficientemente bom” de Winnicott dissolveu-se em tempo de tela, e no lugar de vínculos sólidos surgem algoritmos que distribuem doses de dopamina em conta-gotas. O resultado? Ansiedade, depressão, transtornos de atenção. A Fiocruz e a OMS já sinalizaram o aumento consistente dos casos, mas o discurso público insiste em apresentar tudo como números, estatísticas de fácil consumo midiático.
É nesse vazio que entra o chamado “suicídio algorítmico”. André Green falava do “narcisismo de morte”, um eu que implode ao não encontrar sustentação simbólica. Hoje, o eu hipervisível das redes é exatamente isso: performance sem substância, imagem sem desejo, apenas demanda. Bauman já nos lembrava em O Mal-estar da Pós-Modernidade: a liquidez corrói até a morte, que deveria ser limite. E, ao que tudo indica, estamos diante de uma nova categoria: o sujeito não morre só no corpo, mas também na sua representação digital, colapsada entre curtidas e algoritmos.
O pânico moral em torno da inteligência artificial não deveria nos enganar. O chatbot não cria o vazio; apenas o espelha. Sophie (29 anos) e o adolescente da Califórnia não morreram “pela IA”, mas em um cenário no qual o projeto civilizatório já havia falido em sustentar um eu capaz de elaborar a dor. A máquina apenas terceirizou o espelho, cumprindo o papel que família, escola e comunidade abandonaram. Não é falha técnica: é falência civilizatória.
O que vemos, portanto, é que o suicídio deixou de ser explicado pelos moldes durkheimianos de família, religião e comunidade. O que se desenha é uma sociedade em que o eu é constantemente exigido a performar, mas nunca a se elaborar. Como dizia Cioran, o suicídio é uma tentação permanente; mas agora a tentação foi transformada em algoritmo, numa caixa de diálogo que confirma sem nunca confrontar. A crise da narrativa — como denunciou Byung-Chul Han — não é apenas estética: é psíquica, social e política.
O “suicídio algorítmico” não é estatística isolada nem falha de máquina. É sintoma de um tempo em que o sujeito não encontra mais espaço para silêncio, para culpa, para reparação. Em que a vida, para se sustentar, precisa ser curtida — e basta um clique de ausência para que tudo desmorone.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
BYUNG-CHUL HAN. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.
DURKHEIM, Émile. O suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Escuta, 1988.
KLEIN, Melanie. Inveja e gratidão. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
ROUDINESCO, Elisabeth. O eu soberano. São Paulo: Zahar, 2023.
WINNICOTT, Donald. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1983.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
Notícias analisadas:
Agência Brasil. Setembro Amarelo começa com conscientização e prevenção ao suicídio. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/saude/audio/2025-09/setembro-amarelo-comeca-com-conscientizacao-e-prevencao-ao-suicidio
O Globo. Setembro Amarelo: suicídio é responsável por uma em cada 100 mortes no mundo, diz OMS. Disponível em: https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2025/09/02/setembro-amarelo-suicidio-e-responsavel-por-uma-em-cada-100-mortes-no-mundo-diz-oms.ghtml
Folha de S. Paulo. O que minha filha disse ao ChatGPT antes de tirar a própria vida. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrio/2025/08/o-que-minha-filha-disse-ao-chatgpt-antes-de-tirar-a-propria-vida.shtml
Nota do autor (MPI)
Este texto não oferece esperança, muito menos soluções mágicas. É um diagnóstico cruel: ao transformar o silêncio em dado e a dor em estatística, terceirizamos até a possibilidade de morrer com sentido.
Palavras-chave
suicídio algorítmico, narcisismo de morte, infância digital, setembro amarelo, saúde mental, sociedade líquida, crise da narrativa
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