Setembro Amarelo na era do feed infinito: entre o mal-estar pós-moderno e a escuta que falta
Pode ser o pica das técnicas, o bam-bam-bam do pedaço, mas na hora de ouvir outro humano, seja só humano com humano.
Todo setembro, fitinhas amarelas se multiplicam em posts, slogans e hashtags. A intenção é legítima: falar de suicídio, quebrar tabu, incentivar prevenção. Mas, como lembraria Bauman, vivemos a pós-modernidade líquida, em que símbolos são frágeis e campanhas viram consumo. A fitinha vira filtro no Instagram, o sofrimento vira dado para o algoritmo. O que deveria ser espaço de escuta vira espetáculo moralizante.
Enquanto isso, na vida concreta, existe quem atravessa crises epilépticas e transtornos bipolares, perde dias de memória, volta dizendo “acordei na geleia, irmão… não tinha nada lá”. Não é tentativa de suicídio, não é “falta de fé”, é corpo que se apaga involuntariamente. O DSM-5 e a CID-11 reconhecem condições biológicas que podem levar a comportamentos auto-lesivos involuntários. Mas a sociedade lê “tentativa” e cola o rótulo. O diagnóstico, que poderia orientar cuidado, vira estigma. Como disse Becker, construímos símbolos para negar a morte; aqui construímos rótulos para negar a vulnerabilidade.
Kierkegaard chamaria isso de angústia: não medo de algo, mas o nada se abrindo diante da liberdade. Cioran chamaria de cume do desespero: consciência nua da finitude sem rede simbólica. Platão encenou no mito da caverna: quem vê a luz, volta, tenta contar e sofre “suicídio social”. Em Matrix, Neo sobrevive porque tem Morpheus e tripulação. O nosso paciente não tem Morpheus; tem feed, estigma, silêncio.
Durkheim mostrou que suicídio não é só ato individual; é fenômeno social ligado a integração e regulação. O isolamento não é só subjetivo; é estrutural. Bauman mostra que a pós-modernidade não oferece mais âncoras sólidas; ela produz “estranhos” descartáveis. Zuboff mostra que o capitalismo de vigilância transforma sofrimento em métrica. Resultado: campanhas que pretendem salvar vidas também podem reforçar a espetacularização da dor. Um “Setembro Amarelo” líquido, sem presença.
O desafio ético é outro: não sermão moral nem “coaching motivacional”, mas reconstruir presença. Criar tempo e ambiente para escutar, mesmo quando o outro diz “não tem nada lá”. Entender que há suicídios involuntários — biológicos, epilépticos, iatrogênicos — e suicídios sociais — cancelamentos, exclusões, diagnósticos-rótulos. Prevenção não é slogan; é vínculo. Não é “dar sentido” forçado; é sustentar o indizível até que o sujeito possa reconstruir narrativa e pertencimento.
Falar “mano”, “irmã”, “parça” não é banalizar; é abrir porta. É reconhecer que linguagem acadêmica sozinha não toca quem está ali com medo. Um humano diante de outro humano, é isso. Não é autoajuda nem coaching. É responsabilidade clínica e social. É criar tempo, ambiente e escuta para que mesmo o nada — o “não tem nada lá” — possa ser sustentado sem se transformar em exclusão.
Se queremos um Setembro Amarelo que valha, precisamos assumir a tensão: campanhas não bastam, algoritmos não cuidam, símbolos frágeis não seguram vidas. O cuidado ético é o encontro, mesmo breve, mesmo provisório, que permite ao sujeito continuar existindo discursivamente enquanto atravessa sua materialidade vulnerável. Não é glamour; é prevenção real.
Lembre-se:
Se você estiver em sofrimento intenso ou pensando em suicídio, procure ajuda imediata.
No Brasil, o CVV atende 24h pelo telefone 188 (ligação gratuita) ou pelo site www.cvv.org.br.
Em emergências, procure um hospital ou o SAMU (192). Se estiver fora do Brasil, busque os serviços de saúde mental de sua região.
#maispertodaignorancia
#ianaoeprofissionaldasaudemental
José Antônio Lucindo da Silva – Psicólogo Clínico | CRP 06/172551
Araraquara – SP | @joseantoniolucindodasilva
Blog: maispertodaignorancia.blogspot.com
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
BECKER, Ernest. A negação da morte. Rio de Janeiro: Record, 2019.
KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. Petrópolis: Vozes, 2013.
CIORAN, Emil. Nos cumes do desespero. São Paulo: Hedra, 2011.
CIORAN, Emil. Breviário da decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
DURKHEIM, Émile. O suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
PLATÃO. A República. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010.
WACHOWSKI, L. & WACHOWSKI, L. Matrix. EUA: Warner Bros, 1999 (filme).
CONSTANTINE. Direção: Francis Lawrence. EUA: Warner Bros, 2005 (filme).
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