O suicídio social involuntário: diagnósticos, métricas e exclusão
Pode ser o mano das métricas, o doutor das teses, o brabo do feed. Mas, diante de quem carrega um rótulo que não escolheu, não é manual nem protocolo: é humano com humano.
Durkheim escreveu que o suicídio não é apenas um ato individual, mas um fenômeno social. O grau de integração e regulação de uma sociedade determina as taxas e formas de suicídio. Mais de um século depois, em pleno capitalismo de vigilância, essa intuição fica evidente. Diagnósticos que deveriam orientar cuidado viram estigma. Algoritmos transformam sofrimento em métrica. Campanhas de prevenção viram filtros. O sujeito que atravessa um estado-limite – coma, crise neurológica, tentativa involuntária de autoextermínio – pode sobreviver biologicamente, mas ser morto simbolicamente: afastamento familiar, perda de vínculos, exclusão laboral, cancelamento social. Um “suicídio social” involuntário.
Bauman chamou de “liquidez” o processo em que instituições e símbolos derretem. Zuboff mostrou que o capitalismo de vigilância coleta nossos dados mais íntimos, inclusive os de sofrimento, para convertê-los em predição e lucro. O resultado é paradoxal: uma sociedade hiperconectada que, na prática, isola. Um “Setembro Amarelo” líquido, onde a dor vira hashtag, o diagnóstico vira rótulo e a prevenção vira espetáculo. A cena de Matrix – Morpheus ligando para Neo, agentes cercando – parece metáfora perfeita: há telefone, mas ninguém atende; há dados, mas não há vínculo.
Nietzsche dizia “o que não me mata me fortalece”. Frankl dizia “quem tem um porquê aguenta qualquer como”. Mas para quem vive esse suicídio social, o que não mata não fortalece: fragiliza. Não há porquê nem como. Camus falava que é preciso imaginar Sísifo feliz empurrando a pedra. Mas e quando a pedra é o estigma? Quando não há tarefa nem destino para amar (Amor Fati)? Quando não há sequer reconhecimento de que o evento não foi voluntário? O estado-limite desmonta o slogan.
Religião como moralidade também falha. A “Oração da Serenidade” fala em aceitar, mudar e distinguir. Mas como aceitar ou mudar o nada? Como distinguir quando não há categorias? Kierkegaard chamou de angústia o nada diante da liberdade. Cioran descreveu o cume do desespero. Becker mostrou que construímos símbolos para negar a morte. Aqui vemos a negação do outro: o diagnóstico vira senha de exclusão, não de cuidado. O suicídio social não é metáfora: é perda real de redes de suporte.
Nesse ponto, prevenção não é postar filtro amarelo nem repetir slogans. Prevenção não é slogan; é vínculo. É reconhecer que há suicídios involuntários — biológicos, epilépticos, iatrogênicos — e suicídios sociais — cancelamentos, exclusões, diagnósticos-rótulos. Não é “dar sentido” forçado; é oferecer chão provisório para que, se houver reconstrução, ela seja do próprio sujeito e não imposição nossa.
Falar “mano”, “irmã”, “parça” não é banalizar; é abrir porta. É reconhecer que linguagem acadêmica sozinha não toca quem está ali com medo. Um humano diante de outro humano, é isso. Não é autoajuda nem coaching. É responsabilidade clínica e social. É criar tempo, ambiente e escuta para que mesmo o nada — o “não tem nada lá” — possa ser sustentado sem se transformar em exclusão.
Se queremos prevenção real, precisamos assumir a tensão: campanhas não bastam, algoritmos não cuidam, símbolos frágeis não seguram vidas. O cuidado ético é o encontro, mesmo breve, mesmo provisório, que permite ao sujeito continuar existindo discursivamente enquanto atravessa sua materialidade vulnerável. Não é glamour; é prevenção real. Se não há pedra, sejamos ao menos chão provisório. Se não há Amor Fati, sejamos ao menos presença mínima.
Lembre-se:
Se você estiver em sofrimento intenso ou pensando em suicídio, procure ajuda imediata.
No Brasil, o CVV atende 24h pelo telefone 188 (ligação gratuita) ou pelo site www.cvv.org.br.
Em emergências, procure um hospital ou o SAMU (192). Se estiver fora do Brasil, busque os serviços de saúde mental de sua região.
#maispertodaignorancia
#ianaoeprofissionaldasaudemental
José Antônio Lucindo da Silva – Psicólogo Clínico | CRP 06/172551
Araraquara – SP | @joseantoniolucindodasilva
Blog: maispertodaignorancia.blogspot.com
Referências:
DURKHEIM, Émile. O suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
FRANKL, Viktor. Em busca de sentido. Petrópolis: Vozes, 2011.
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2016.
BECKER, Ernest. A negação da morte. Rio de Janeiro: Record, 2019.
KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. Petrópolis: Vozes, 2013.
CIORAN, Emil. Nos cumes do desespero. São Paulo: Hedra, 2011.
DSM-5. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Porto Alegre: Artmed, 2014.
CID-11. Classificação Internacional de Doenças. OMS, 2022.
WACHOWSKI, L. & WACHOWSKI, L. Matrix. EUA: Warner Bros, 1999 (filme).
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