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O eu digital: soberania ilusória, vínculos corroídos e o suicídio como sintoma civilizatório

O eu digital: soberania ilusória, vínculos corroídos e o suicídio como sintoma civilizatório


#ianaoeprofissionaldasaudemental 
#maispertodaignorancia


Setembro Amarelo chegou novamente. Mas, ao contrário das campanhas higienizadas que circulam nos outdoors ou nas timelines, os dados recentes lembram que o suicídio permanece como um dos maiores problemas de saúde pública do planeta. A Organização Mundial da Saúde estima que uma em cada 100 mortes no mundo decorra do suicídio (OMS, 2025). No Brasil, os números seguem em crescimento, sobretudo entre jovens e adultos jovens. O que isso nos diz? Que as campanhas que insistem em slogans como “se precisar, peça ajuda” podem até sensibilizar, mas não respondem à dimensão estrutural do problema.

O que emerge é um sujeito isolado, responsabilizado e infantilizado ao mesmo tempo. O indivíduo é chamado a ser soberano de si, gestor de suas emoções, resiliente diante de crises e ansiedades. Mas essa soberania não passa de ficção. Élisabeth Roudinesco, em O Eu soberano, mostrou como a hipertrofia do eu na modernidade se converte em prisão narcísica: um eu inflado de imagens e performances, mas esvaziado de vínculos reais.

Esse movimento já estava diagnosticado em Freud. Em Luto e Melancolia, ele mostrou que a perda não elaborada transforma o eu em sombra. Sem espaço de elaboração, o sujeito não encontra mais alteridade capaz de conter o excesso. André Green radicalizou isso em Narcisismo de vida, narcisismo de morte: sem o outro, resta apenas a clausura autodestrutiva. O narcisismo de morte se torna pulsão social, agora mediada por telas e algoritmos.

Byung-Chul Han, em A expulsão do outro, descreveu a lógica contemporânea: vivemos na sociedade da transparência, onde a alteridade é dissolvida em espelhos. O digital reforça essa dinâmica — o outro desaparece, o eu só encontra reflexos de si mesmo. Daí o paradoxo: nunca estivemos tão conectados, mas nunca fomos tão solitários.

Bauman chamou isso de amor líquido: vínculos frágeis, descartáveis, relações que não resistem à mínima frustração. O eu performático, encorajado a expor-se e engajar-se, é também o mesmo eu descartável, substituído a cada rolagem de tela. Quando essas performances falham, não sobra suporte simbólico nem comunitário.

No fundo, o que está em jogo é uma reconfiguração civilizatória. Marcuse, em Eros e civilização, já advertia que a modernidade converteu a liberdade em obrigação de desempenho. O eu acredita ser protagonista, mas, na prática, internaliza as exigências do sistema. É domesticado pelo princípio de desempenho: parecer produtivo, resiliente, desejável. Não por acaso, as campanhas de prevenção ao suicídio também insistem nessa gramática — a de responsabilizar o indivíduo pela própria dor.

Essa responsabilização convive com uma infantilização: o sujeito é convidado a buscar consolo em manuais rápidos, frases de efeito, aplicativos de meditação. Como se beber água ou caminhar fosse resposta suficiente para quem está às voltas com o vazio existencial. O caso do adolescente nos EUA, que recebeu respostas automatizadas de um chatbot quando manifestou ideias suicidas, e da jovem de 29 anos que buscou orientação semelhante, são sintomas de um mesmo processo: a terceirização do cuidado para algoritmos que simulam escuta, mas não sustentam vida (Financial Times, 2025; O Globo, 2025).

Durkheim, no século XIX, já mostrava em O suicídio que não se trata de ato privado, mas de fato social. O suicídio cresce quando laços comunitários enfraquecem. Famílias desfeitas, ausência de inserção profissional, perda de referência religiosa ou simbólica — todos eram fatores de risco. Mas o que vemos hoje é ainda mais radical: mesmo onde há família ou emprego, os vínculos se fragilizam pela lógica líquida e pela mediação digital. Não é só a ausência de laços, mas a sua inconsistência estrutural.

Zuboff, em A Era do Capitalismo de Vigilância, mostrou como os algoritmos não apenas observam, mas moldam comportamentos. O eu que acreditava ser soberano é, na prática, produzido por dispositivos que antecipam desejos, sugerem reações e modulam afetos. Marx já denunciava no século XIX que o sujeito no capitalismo se torna mercadoria. Hoje, essa mercantilização atinge até a vida psíquica: perfis, dados e emoções são moeda de troca.

Cioran, em Nos cumes do desespero, lembrava que a tentação do suicídio é permanente, porque a existência é insuportavelmente consciente de si. Camus, em O mito de Sísifo, afirmava que o suicídio é o único problema filosófico sério. Hoje, o digital parece atualizar esse dilema: não é a filosofia que empurra o sujeito ao limite, mas sim a saturação de discursos e a impossibilidade de silêncio. Dalgalarrondo, ao estudar religião e saúde mental, reforçou que comunidades de fé antes serviam como contenção; sua erosão abre espaço para novas vulnerabilidades.

Assim, vemos que o suicídio não pode ser tratado como ato individual ou erro privado. É ato social, mas agora atravessado por algoritmos, liquidez e pela hipertrofia de um eu incapaz de se sustentar fora da performance. O sujeito que interrompe sua vida não é só uma “estatística” — é expressão máxima de uma cultura que dissolveu hábitos, costumes e rituais de pertencimento.

O que resta é constatar o paradoxo: vivemos a era do “eu soberano”, mas esse eu é a instância mais frágil da civilização contemporânea. Ele é responsabilizado, mas não sustentado; infantilizado, mas cobrado como adulto; exaltado nas campanhas, mas sozinho diante do abismo.

Não há promessa de redenção aqui. Apenas análise crua: quando o eu é apenas avatar, o suicídio deixa de ser escolha individual para tornar-se sintoma coletivo.


REFERÊNCIAS:

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

CIORAN, Emil. Nos cumes do desespero. São Paulo: Rocco, 1998.

DALGALARRONDO, Paulo. Religião, psicopatologia e saúde mental. Porto Alegre: Artmed, 2008.

DURKHEIM, Émile. O suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Escuta, 1988.

HAN, Byung-Chul. A expulsão do outro. Petrópolis: Vozes, 2017.

MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.

MARX, Karl. O capital. São Paulo: Boitempo, 2011.

ROUDINESCO, Élisabeth. O Eu soberano. Rio de Janeiro: Zahar, 2022.

ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.


Fontes jornalísticas:

AGÊNCIA BRASIL. Setembro Amarelo começa com conscientização e prevenção ao suicídio. 2025.

O GLOBO. Setembro Amarelo: suicídio é responsável por uma em cada 100 mortes no mundo, diz OMS. 2025.

VALOR ECONÔMICO. O problema de chatbots de IA discutirem suicídio com adolescentes. 2025.

FOLHA DE S. PAULO. OpenAI incluirá controles parentais no ChatGPT após morte de adolescente. 2025.


NOTA DO AUTOR (MPI):

Este texto integra o projeto Mais Perto da Ignorância, que não promete saídas fáceis nem “cura” discursiva. Nosso objetivo é tensionar o presente histórico, registrar sintomas e mostrar como estruturas sociais, econômicas e tecnológicas moldam a subjetividade até seus limites mais sombrios. O suicídio não é falha de caráter ou fraqueza individual: é reflexo de uma época em que o eu é inflado como soberano, mas colapsa porque carece de alicerces simbólicos e comunitários.


PALAVRAS-CHAVE:

suicídio, eu digital, fragilidade, redes sociais, hiperindividualismo, narcisismo, liquidez, performance, tecnologia, capitalismo de vigilância, setembro amarelo


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