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Materialidades do Suicídio: Entre o Algoritmo e os Hábitos da Vida

Materialidades do Suicídio: Entre o Algoritmo e os Hábitos da Vida



Introdução

Discutir o suicídio é discutir a própria vida. O ato em si não resolve, porque fora da vida não há reelaboração — apenas silêncio. Essa é a ironia fundamental: toda reflexão sobre a morte só pode acontecer enquanto estamos vivos. A partir desse paradoxo, este capítulo se inscreve no projeto Mais Perto da Ignorância (MPI), tensionando a questão do suicídio não como evento isolado, mas como fenômeno psico-bio-social e tecnológico, atravessado pelas materialidades concretas da existência.

Essas materialidades não são apenas estruturas abstratas; são práticas, costumes e hábitos cotidianos que organizam a vida e, portanto, também a morte. Elas se expressam em instituições (educação, saúde, família), em tecnologias (plataformas digitais, algoritmos, vigilância), em subjetividades (ressentimento, vergonha, angústia) e em filosofias (Cioran, Nietzsche, Freud, Brodsky). Ao articular esses níveis, buscamos compreender como o suicídio emerge não apenas como gesto, mas como sintoma de um tempo histórico que silencia a elaboração do sofrimento.


1. A dimensão biológica e psíquica

Estudos recentes apontam alterações em cérebros e amostras de sangue de pessoas que morreram por suicídio (VEJA, 2024). Esses achados sugerem potenciais marcadores biológicos, mas não determinam causalidade. Como ressalta Damiano em Compreendendo o Suicídio (2021), o comportamento suicida emerge da interação entre predisposições genéticas, fatores psíquicos e contextos sociais.

Freud, em O mal-estar na civilização (1930/2010), já havia advertido: o sofrimento humano deriva do embate entre pulsões e exigências culturais. O suicídio, nesse prisma, é a recusa ao recalque, a tentativa de abolir o mal-estar pela via mais radical. Mas só na vida há recalque, contradição e reelaboração. Fora dela, não há trabalho psíquico, apenas interrupção.

A clínica ensina que a dor, quando narrada, pode se transformar. Mas essa transformação exige tempo, escuta e alteridade — três dimensões cada vez mais ausentes na sociedade hiperconectada.


2. A dimensão social

Durkheim (1897/2000) definiu o suicídio como “fato social”. Não se trata de escolha puramente individual, mas de produto das condições de integração e regulação social. A dissolução dos laços — visível hoje nas relações frágeis, líquidas, descritas por Bauman (2003) — amplia a vulnerabilidade subjetiva.

No Brasil, esse cenário ganha contornos específicos: os dados do Pisa (2022) e do Inaf (2022) apontam índices baixos de compreensão leitora e interpretação textual. O IBGE (2023) mostra limitações de acesso a cuidados em saúde mental. Essas materialidades educacionais e institucionais não são detalhes técnicos; são determinantes que dificultam a elaboração da dor. Se o sujeito não encontra meios de interpretar discursos, também não encontra recursos para interpretar o próprio sofrimento.

A cultura do cancelamento, a polarização política e a fragilidade dos vínculos afetivos apenas reforçam essa dinâmica. O espaço público, antes mediador, tornou-se palco de humilhação e silenciamento.


3. A dimensão tecnológica

O suicídio, na contemporaneidade, não pode ser pensado sem considerar a mediação das tecnologias digitais. Plataformas como TikTok e Instagram estão sendo processadas por direcionar conteúdos de automutilação a adolescentes (VEJA, 2024). Nos EUA, a OpenAI foi acusada por pais de um jovem que teria recebido respostas inadequadas do ChatGPT em contexto de crise (VEJA, 2025).

O problema não é a tecnologia em si, mas sua lógica. Os algoritmos são projetados para maximizar engajamento, não cuidado. Byung-Chul Han (2012) descreve esse ambiente como um “feed liso”: sem alteridade, apenas reflexos do mesmo. Curtir deixou de ser engajamento para se tornar silêncio: ao curtir, o usuário muitas vezes exclui o conteúdo do próprio feed, eliminando a chance de reelaboração discursiva.

Shoshana Zuboff (2019) mostra que até o silêncio é capturado como dado no capitalismo de vigilância. Marx (1867/2011) ajuda a entender: discursos circulam como mercadorias, e identidades são consumidas como produtos. A tecnologia, portanto, não é apenas ferramenta, mas materialidade que redefine hábitos, costumes e subjetividades.


4. A dimensão filosófica e civilizatória

O Suicídio do Ocidente denuncia a autodestruição de sociedades que já não acreditam em sua continuidade cultural. É a materialidade de uma civilização que consome a si mesma.

Cioran, em seu Breviário de Decomposição (1989), lembra que o suicídio funciona menos como ato do que como ideia permanente: um consolo que sustenta o viver no absurdo. Brodsky, em sua Aula Inaugural (1984), alerta que o Mal nunca se apresenta como tal, mas mascarado de Bem, como unanimidade esmagadora.

Kierkegaard, em O conceito de angústia (1844/2010), vê a angústia como essência da liberdade: sem ela, resta apenas automatismo. Ao eliminar a angústia, a sociedade da performance cria ansiedade crônica. Nesse sentido, a tecnologia não resolve o mal-estar; apenas o acelera.


5. O sujeito diante de si mesmo (Clóvis)

Clóvis de Barros Filho lembra que “aquele que é capaz de se entristecer consigo mesmo tem garrafa vazia para quebrar”. A imagem é concreta: só quem reconhece a própria vergonha consegue transformar humilhação em brilho, ou seja, em força.

Essa perspectiva ecoa Freud: o recalque é motor de elaboração. Mas, nas redes digitais, esse tempo desaparece. O sujeito não elabora; performa. A tristeza vira conteúdo, curtida, exclusão algorítmica.


6. Ressentimento e super-homem (Pondé via Nietzsche)

Pondé observa que o super-homem é aquele que não é ressentido. Ele não espera gabaritos externos para validar sua vida. Hoje, no entanto, os algoritmos funcionam como falsos gabaritos. O sujeito mede sua validade por métricas de engajamento. O hábito de buscar validação externa — curtidas, visualizações — é materialidade que produz ressentimento e fragilidade.


7. Repetição e contingência (Cioran via Pondé)

Cioran afirmava: “O que eu sei aos 60, já sabia aos 20. Foram 40 anos inúteis de verificação.” Essa ironia mostra como a vida repete intuições até a exaustão. É a materialidade da repetição: hábitos confirmam o que já sabíamos.

Na era digital, essa repetição é acelerada. Scrollar infinitamente é verificar, sem cessar, a mesma intuição: nada muda, apenas se confirma. Mas, ao contrário de Cioran, não encontramos lucidez na repetição — apenas cansaço.


8. A morte como inevitável (Viviane Mozer)

Viviane Mozer lembra que “a morte não é opção; a vida é que é escolha”. Filosofar, portanto, é aprender a morrer. Essa frase ecoa o pensamento estoico: se a morte é inevitável, o trabalho ético é aprender a viver.

No entanto, a cultura digital transforma até a morte em dado, em trending topic, em estatística. Perde-se a densidade da finitude. O hábito cultural de negar a morte é substituído pela prática de consumi-la como espetáculo.


Conclusão

O suicídio, quando analisado a partir das materialidades sociais, tecnológicas e subjetivas, mostra-se menos como ato isolado e mais como sintoma estrutural. Ele nasce de hábitos concretos: a incapacidade de interpretar discursos, o gesto de clicar, a busca por validação, a recusa ou aceitação da vergonha, a relação com a morte.

O texto MPI e as falas filosóficas convergem: viver é estar preso a práticas materiais. Quando esses hábitos sustentam a vida — recalque, angústia, vergonha elaborada — o sujeito encontra meios de seguir. Quando se tornam intoleráveis — validação algorítmica, ressentimento, repetição sem sentido — o suicídio se apresenta como saída ilusória.

A crítica corrosiva do MPI é clara: o maior suicídio coletivo não é o ato de indivíduos isolados, mas a dissolução da humanidade ao confundir engajamento com escuta, ter com ser, feed com diálogo. Resistir significa recuperar a alteridade, sustentar o recalque e reivindicar o tempo da elaboração — algo que nenhum algoritmo concede.


Notas do Autor:

Este capítulo foi elaborado segundo os princípios éticos do Conselho Federal de Psicologia, evitando prescrição clínica e sensacionalismo. O objetivo é tensionar criticamente os discursos sociais, tecnológicos e filosóficos sobre o suicídio. Em caso de sofrimento, recomenda-se buscar atendimento profissional qualificado. No Brasil, o CVV (188) está disponível 24h.


Palavras-chave

Suicídio; Saúde Mental; Psicanálise; Filosofia; Algoritmos; Tecnologia; Sociedade; Materialidade; Engajamento; Educação; Brasil.


Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

BRODSKY, Joseph. Aula inaugural – Williams College, 1984. In: Menos que um. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2004.

CIORAN, Emil. Breviário de decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.

DAMIANO, Adriana et al. Compreendendo o suicídio. São Paulo: Unesp, 2021.

DURKHEIM, Émile. O suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização (1930). Obras completas, v. 18. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

HAN, Byung-Chul. A sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2012.

KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. Petrópolis: Vozes, 2010.

MARX, Karl. O capital (1867). São Paulo: Boitempo, 2011.

PONDÉ, Luiz Felipe; BARROS FILHO, Clóvis de; MOZER, Viviane. Transcrições de falas. Documento interno, 2025.

ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019.

VEJA. Estudo identifica alterações no cérebro e sangue de suicidas. 24 jan. 2024.

VEJA. TikTok é processado por conteúdo que teria levado a suicídio de jovens franceses. 04 nov. 2024.

VEJA. Pais processam OpenAI e culpam ChatGPT por suicídio do filho adolescente. 27 ago. 2025.

VEJA. Celular antes dos 13 impacta saúde mental e pode afetar 1 em cada 3 jovens da próxima geração. 22 jul. 2025.

VEJA. Câmara aprova ECA Digital, que obriga redes a proteger menores de idade. 20 ago. 2025.

VEJA. Congresso e governo ampliam cerco ao vale-tudo digital. 23 ago. 2025.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Prevenção do Suicídio – Saúde Mental. Brasília, 2024.


Link original para aprofundar sobre o tema:
http://maispertodaignorancia.blogspot.com/2025/09/arquivo-critico-mpi-suicidio-tecnologia.html

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