Despertar sem Morpheus: corpo e código
Pode ser o brabo das teorias, o mestre das métricas, o pica do feed. Mas, diante de quem voltou do nada, não é manual nem protocolo: é humano com humano.
Neo recebe o telefonema de Morpheus, corre pelo escritório, hesita no andaime. As máquinas estão chegando, os agentes cercam, a saída é arriscada. Ele escuta a voz que diz “vai, confia” e ao mesmo tempo sente o corpo tremer. Parece ficção científica, mas a cena é um retrato brutal da nossa experiência em estados-limite. Pacientes que atravessam coma, crises epilépticas ou tentativas involuntárias de autoextermínio relatam algo semelhante: acordam sem saber onde estão, sem saber se estão vivos ou mortos, sem narrativa para contar. Dizem apenas “acordei na geleia, irmão… não tinha nada lá”. Não é drama, não é “fraqueza”, não é falta de fé. É corpo apagando e voltando sem manual de instruções.
Freud chamou de trauma aquilo que excede a capacidade de simbolização. Na infância, isso acontece sem linguagem; fica como traço e retorna como sintoma. Na vida adulta, quando a linguagem já existe, o estado-limite produz uma espécie de “primeiro trauma” tardio: a pessoa volta do apagão com palavras, mas sem narrativa. O nada já é signo, mas não sustenta sentido. Kierkegaard chamaria isso de angústia: não medo de algo, mas o nada se abrindo diante da liberdade. Cioran descreveu o cume do desespero. Becker mostrou que construímos símbolos para negar a morte. Aqui, o apagão desmonta esses símbolos.
Nietzsche dizia “o que não me mata me fortalece”. Mas no estado-limite o que não mata pode deixar sequelas, déficit, trauma. Frankl dizia “quem tem um porquê aguenta qualquer como”. Mas e quando o porquê desaparece junto com o como? Camus falava que é preciso imaginar Sísifo feliz empurrando a pedra. Mas e quando não há pedra? Não há destino para amar (Amor Fati). Não há tarefa para se agarrar. Há apenas o real sem narrativa. A discursividade não dá conta; slogans motivacionais falham; frases espirituais não seguram.
Bauman lembra que na pós-modernidade líquida os símbolos derretem. Zuboff mostra que o capitalismo de vigilância transforma sofrimento em métrica. Diagnósticos que deveriam orientar cuidado viram rótulo (“bipolar”, “doente”), isolando ainda mais. Durkheim mostrou que suicídio é fenômeno social ligado a integração e regulação. Aqui vemos a exclusão radical: um “suicídio social” involuntário quando o corpo apaga e a rede não acolhe. O “Setembro Amarelo” vira filtro; campanhas de prevenção podem reforçar a espetacularização da dor. O telefone de Morpheus não toca.
Religião como moralidade também falha. A “Oração da Serenidade” fala em aceitar, mudar e distinguir. Mas como aceitar ou mudar o nada? Como distinguir quando não há categorias? Kierkegaard chamou de angústia o nada diante da liberdade. Becker mostrou que construímos símbolos para negar a morte. O estado-limite desmonta esses símbolos. Não é negação da morte; é experiência de que não há narrativa para a morte nem para a vida.
Nesse ponto, o convite ético não é preencher o vazio com falsas verdades, nem exigir superação, nem vender esperança pronta. É sustentar presença mínima. É reconhecer que há suicídios involuntários — biológicos, epilépticos, iatrogênicos — e suicídios sociais — cancelamentos, exclusões, diagnósticos-rótulos. Prevenção não é slogan; é vínculo. Não é “dar sentido” forçado; é oferecer chão provisório para que, se houver reconstrução, ela seja do próprio sujeito e não imposição nossa.
Falar “mano”, “irmã”, “parça” não é banalizar; é abrir porta. É reconhecer que linguagem acadêmica sozinha não toca quem está ali com medo. Um humano diante de outro humano, é isso. Não é autoajuda nem coaching. É responsabilidade clínica e social. É criar tempo, ambiente e escuta para que mesmo o nada — o “não tem nada lá” — possa ser sustentado sem se transformar em exclusão.
Se queremos prevenção real, precisamos assumir a tensão: campanhas não bastam, algoritmos não cuidam, símbolos frágeis não seguram vidas. O cuidado ético é o encontro, mesmo breve, mesmo provisório, que permite ao sujeito continuar existindo discursivamente enquanto atravessa sua materialidade vulnerável. Não é glamour; é prevenção real. Se não há pedra, sejamos ao menos chão provisório. Se não há Amor Fati, sejamos ao menos presença mínima.
Lembre-se:
Se você estiver em sofrimento intenso ou pensando em suicídio, procure ajuda imediata.
No Brasil, o CVV atende 24h pelo telefone 188 (ligação gratuita) ou pelo site www.cvv.org.br.
Em emergências, procure um hospital ou o SAMU (192). Se estiver fora do Brasil, busque os serviços de saúde mental de sua região.
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José Antônio Lucindo da Silva – Psicólogo Clínico | CRP 06/172551
Araraquara – SP | @joseantoniolucindodasilva
Blog: maispertodaignorancia.blogspot.com
Referências:
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
FRANKL, Viktor. Em busca de sentido. Petrópolis: Vozes, 2011.
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2016.
BECKER, Ernest. A negação da morte. Rio de Janeiro: Record, 2019.
KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. Petrópolis: Vozes, 2013.
CIORAN, Emil. Nos cumes do desespero. São Paulo: Hedra, 2011.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
DURKHEIM, Émile. O suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
DSM-5. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Porto Alegre: Artmed, 2014.
CID-11. Classificação Internacional de Doenças. OMS, 2022.
WACHOWSKI, L. & WACHOWSKI, L. Matrix. EUA: Warner Bros, 1999 (filme).
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