Corpo, sintoma e código: um mapa materialista do sofrimento psíquico
Aprenda todas as técnicas, seja o bam-bam-bam do pedaço, mas quando ouvir outro humano, seja humano com humano.
Quando falamos de sofrimento psíquico em estados-limite — epilepsia, crises maníacas, tentativas involuntárias de autoextermínio, diagnósticos terminais — não estamos falando de metáfora. Estamos falando de um corpo vivo, com sistema nervoso, que pode desligar de repente. Antes de qualquer narrativa existe um corpo. É nesse corpo que o diagnóstico se ancora — e é nesse corpo que ele também pode falhar em nomear a experiência singular do sujeito.
O DSM-5 define os transtornos mentais como “síndromes caracterizadas por perturbação clinicamente significativa na cognição, regulação emocional ou comportamento, refletindo disfunção dos processos psicológicos, biológicos ou de desenvolvimento” (APA, 2014). A CID-11 descreve, no capítulo 6, “transtornos mentais, comportamentais e de desenvolvimento neurológico” como “síndromes com padrões clinicamente significativos de comportamento, cognição e emoção” (OMS, 2018). Em termos técnicos, tudo começa pelo corpo: circuitos neuronais, descargas elétricas, neurotransmissores. Mas o corpo não é apenas máquina; é também lugar onde a narrativa do Eu se ancora. Quando o corpo apaga — por crise, por coma, por diagnóstico — a narrativa apaga junto.
É aqui que mora o risco ético. O diagnóstico clínico não pode ser confundido com identidade moral (“louco”, “instável”). O DSM-5 lista especificadores para o Transtorno Bipolar — “com sintomas ansiosos”, “com características mistas”, “com ciclagem rápida” — e a CID-11 agrupa os transtornos do humor e os transtornos relacionados ao medo como perturbações primárias de regulação afetiva. Essa classificação lembra que o diagnóstico é rótulo operacional, útil para orientar cuidado, mas incapaz de capturar o “eu” que sofre.
Nosso debate mostrou que o medo — do paciente, da família, dos profissionais — quase nunca aparece nas campanhas ou protocolos. O DSM-5 cria categorias como “transtornos de ansiedade” e “perturbações relacionadas ao medo”, mas não ensina a escutar o medo cru de alguém que volta de um coma ou de uma tentativa de autoeliminação. A CID-11 fala em “sofrimento ou prejuízo na vida pessoal, familiar, social…”, mas o sofrimento não é apenas uma variável: é a experiência que precisa ser acolhida.
Por isso usamos Matrix e Constantine. Neo acorda na cápsula, carne ligada a cabos. Sem Morpheus, seria apenas mais uma bateria para as máquinas. Constantine barganha com o inferno, tenta suicídio não por “escolha” mas por não aguentar mais a realidade que lhe atravessa. Recebe um diagnóstico terminal, e mesmo assim negocia com instâncias sobrenaturais. São metáforas para experiências extremas: acordar do coma como Neo sai da cápsula; perceber que não havia “Morpheus” para intermediar; tentar barganhar com a morte como Constantine. Essas metáforas não substituem a clínica, mas funcionam como pontes de linguagem para jovens, leigos, familiares.
O nosso fio condutor é simples e duro:
O corpo sofre biologicamente (convulsão, mania, depressão).
O discurso tenta simbolizar esse sofrimento.
As classificações (DSM/CID) são mapas úteis, mas não são o território.
No limite, como diz a CID-11, são síndromes com perturbação dos processos que sustentam o funcionamento mental. Mas o diagnóstico não escuta sozinho — é o profissional que precisa escutar, sem moralismo, sem coachismo, sem estetizar a dor.
Freud, no Mal-Estar na Civilização, advertia que o processo civilizatório impõe renúncias e recalques para possibilitar convivência. Após um estado-limite, o sujeito volta fora dessa gramática civilizatória: o corpo funciona, mas a narrativa social não cabe mais. Kierkegaard chamou de angústia o nada diante da liberdade. Espinosa escreveu que morremos para ser. Cioran descreveu o cume do desespero. Becker mostrou que construímos símbolos para negar a morte. Nietzsche dizia “o que não me mata me fortalece”. Frankl dizia “quem tem um porquê aguenta qualquer como”. Mas aqui, o que não mata não fortalece; fragiliza. O porquê desaparece junto com o como. Camus escreveu que é preciso imaginar Sísifo feliz empurrando a pedra. Mas e quando não há pedra? Não há destino para amar (Amor Fati). Não há tarefa para se agarrar. Há apenas o real sem narrativa.
É por isso que a associação livre volta a ser essencial. Em Freud, a associação livre é o método que permite que aquilo que não tem lugar no discurso apareça sem censura. Para esse tipo de paciente, a associação livre seria mais do que técnica: seria espaço ético para que o medo emerja sem ser enquadrado. Não é para interpretar imediatamente nem para dar essência pronta, mas para sustentar a emergência do afeto. Escutar o medo cru do retorno não é preencher o silêncio; é sustentar o silêncio até que vire palavra.
Falar “mano”, “irmã”, “parça” não é banalizar; é abrir porta. É reconhecer que linguagem acadêmica sozinha não toca quem está ali com medo. Um humano diante de outro humano, é isso. Não é autoajuda nem coaching. É responsabilidade clínica e social. É criar tempo, ambiente e escuta para que mesmo o medo — esse medo sem narrativa — possa ser sustentado sem se transformar em exclusão.
Se queremos prevenção real, precisamos assumir a tensão: campanhas não bastam, algoritmos não cuidam, símbolos frágeis não seguram vidas. O cuidado ético é o encontro, mesmo breve, mesmo provisório, que permite ao sujeito continuar existindo discursivamente enquanto atravessa sua materialidade vulnerável. Não é glamour; é prevenção real. Se não há pedra, sejamos ao menos chão provisório. Se não há Amor Fati, sejamos ao menos presença mínima. Escutar o medo é o primeiro passo.
Lembre-se:
Se você estiver em sofrimento intenso ou pensando em suicídio, procure ajuda imediata.
No Brasil, o CVV atende 24h pelo telefone 188 (ligação gratuita) ou pelo site www.cvv.org.br.
Em emergências, procure um hospital ou o SAMU (192). Se estiver fora do Brasil, busque os serviços de saúde mental de sua região.
#maispertodaignorancia
#ianaoeprofissionaldasaudemental
José Antônio Lucindo da Silva – Psicólogo Clínico | CRP 06/172551
Araraquara – SP | @joseantoniolucindodasilva
Blog: maispertodaignorancia.blogspot.com
Referências :
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. Porto Alegre: Artmed, 2014.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Classificação Internacional de Doenças – 11ª Revisão (CID-11): Capítulo 6 – Transtornos mentais, comportamentais e de desenvolvimento neurológico. Genebra: OMS, 2018.
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Código de Ética Profissional do Psicólogo. Brasília: CFP, 2005.
FREUD, Sigmund. Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. Petrópolis: Vozes, 2013.
ESPINOSA, Baruch. Ética. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
CIORAN, Emil. Nos cumes do desespero. São Paulo: Hedra, 2011.
BECKER, Ernest. A negação da morte. Rio de Janeiro: Record, 2019.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
FRANKL, Viktor. Em busca de sentido. Petrópolis: Vozes, 2011.
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2016.
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