Constantine sem fases: medo, retorno e escuta radical
Pode ser o bam-bam-bam da ciência, o mestre dos protocolos, o pica das métricas… mas quando alguém volta do nada sem narrativa, não é manual nem protocolo: é humano com humano.
Em Constantine vemos um personagem que é tratado como louco porque vê o que ninguém vê. Tenta suicídio não por “livre escolha”, mas porque não aguenta mais o que vê. Depois descobre que tem câncer — um diagnóstico terminal que ameaça eliminá-lo biologicamente e discursivamente. Ao mesmo tempo em que se declara niilista, faz barganhas com instâncias sobrenaturais para tentar escapar de um destino que lhe foi prometido pelas liturgias religiosas. Vive um paradoxo: discursivamente “nada faz sentido”, mas ao mesmo tempo preso à negociação com algo maior. Constantine é um Neo sem Morpheus: tem acesso ao “código”, mas não tem um outro confiável para intermediar sua travessia.
Essa imagem expõe o que chamamos aqui de estado-limite: coma, crises neurológicas graves, tentativas involuntárias de autoextermínio, diagnósticos terminais. Eventos que o sujeito não escolheu e que excedem a capacidade de simbolização. Ao retornar, não há pílula azul nem vermelha. Não há roteiro. O sujeito volta com medo, sem narrativa, sem manual. E é tratado, muitas vezes, como “louco” ou “irresponsável”, reforçando o isolamento.
Se aplicarmos a esse sujeito os modelos genéricos de “aceitação” — como as fases de Kübler-Ross — cometemos um erro grave. Esses modelos nasceram do acompanhamento de pacientes terminais para ajudar a nomear um processo de luto previsível. Mas quem volta de um estado-limite não está em luto de si mesmo; está vivendo um trauma singular. Volta com corpo funcional, mas sem gramática social. Seu medo não é falta de evolução; é dado cru de uma experiência sem precedentes. Escutá-lo é suspender fases, tabelas e slogans.
Freud, no Mal-Estar na Civilização, já advertia que o processo civilizatório impõe renúncias e recalques para possibilitar convivência. Mas aqui, após um estado-limite, o sujeito volta fora dessa gramática civilizatória: o corpo funciona, mas a narrativa social não cabe mais. Ele não tem representação nem para o corpo, nem para o discurso, nem para o ambiente. Nietzsche dizia “o que não me mata me fortalece”. Frankl dizia “quem tem um porquê aguenta qualquer como”. Mas no estado-limite o que não mata não fortalece; fragiliza. O porquê desaparece junto com o como. Camus escreveu que é preciso imaginar Sísifo feliz empurrando a pedra. Mas e quando não há pedra? Não há destino para amar (Amor Fati). Não há tarefa para se agarrar. Há apenas o real sem narrativa. A discursividade não dá conta; slogans motivacionais falham; frases espirituais não seguram. Constantine barganha porque não tem Morpheus.
Neurobiologicamente, crises e estados comotativos envolvem descargas elétricas maciças, liberação de catecolaminas, alterações nos circuitos de medo (amígdala, hipocampo, córtex pré-frontal). O inconsciente não desliga como um interruptor; traços sensoriais podem ser armazenados sem passagem pela memória explícita. Quando a consciência retorna, há uma experiência corporal não simbolizada: memórias implícitas de dor, luz, manipulação médica — um “trauma do corpo” que se expressa como medo difuso. É um medo sem objeto, medo do retorno. É o que Constantine encena em chave sobrenatural.
Durkheim mostrou que suicídio é fenômeno social ligado a integração e regulação. Aqui vemos a exclusão radical: um “suicídio social” involuntário quando o corpo apaga e a rede não acolhe. Bauman lembrou que na pós-modernidade líquida os símbolos derretem. Zuboff mostrou que o capitalismo de vigilância transforma sofrimento em métrica. O “Setembro Amarelo” vira filtro; diagnósticos viram rótulo (“bipolar”, “doente”), isolando ainda mais. E o medo não aparece: nem o medo de quem atravessou, nem o medo de quem cuida. Constantine não precisava de um anjo nem de um demônio; precisava de um Morpheus que não o chamasse de louco.
No clímax do filme, Constantine para de barganhar. Ao ver Angela prestes a ser levada, não negocia mais; se entrega. Não é um sacrifício moralista, nem um suicídio heroico — é um gesto de “aceitar perder o controle”, de ceder ao outro, algo que ele não tinha feito até então. E é esse gesto, paradoxalmente, que o “salva” na narrativa: ao parar de barganhar e agir pelo outro, ele suspende a lógica que o condenava. Constantine deixa de ser “o Neo sem Morpheus” e se torna, por um instante, o Morpheus do outro: oferece presença, mesmo que não tenha garantia de retorno. Essa é a imagem mais radical de escuta: escutar o que já não está mais aqui, sustentar o vazio, o medo, sem barganha nem narrativa pronta.
Falar “mano”, “irmã”, “parça” não é banalizar; é abrir porta. É reconhecer que linguagem acadêmica sozinha não toca quem está ali com medo. Um humano diante de outro humano, é isso. Não é autoajuda nem coaching. É responsabilidade clínica e social. É criar tempo, ambiente e escuta para que mesmo o medo — esse medo sem narrativa — possa ser sustentado sem se transformar em exclusão.
Se queremos prevenção real, precisamos assumir a tensão: campanhas não bastam, algoritmos não cuidam, símbolos frágeis não seguram vidas. O cuidado ético é o encontro, mesmo breve, mesmo provisório, que permite ao sujeito continuar existindo discursivamente enquanto atravessa sua materialidade vulnerável. Não é glamour; é prevenção real. Se não há pedra, sejamos ao menos chão provisório. Se não há Amor Fati, sejamos ao menos presença mínima. Escutar o medo é o primeiro passo.
Lembre-se:
Se você estiver em sofrimento intenso ou pensando em suicídio, procure ajuda imediata.
No Brasil, o CVV atende 24h pelo telefone 188 (ligação gratuita) ou pelo site www.cvv.org.br.
Em emergências, procure um hospital ou o SAMU (192). Se estiver fora do Brasil, busque os serviços de saúde mental de sua região.
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José Antônio Lucindo da Silva – Psicólogo Clínico | CRP 06/172551
Araraquara – SP | @joseantoniolucindodasilva
Blog: maispertodaignorancia.blogspot.com
Referências:
FREUD, Sigmund. Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. Petrópolis: Vozes, 2013.
ESPINOSA, Baruch. Ética. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
CIORAN, Emil. Nos cumes do desespero. São Paulo: Hedra, 2011.
BECKER, Ernest. A negação da morte. Rio de Janeiro: Record, 2019.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
FRANKL, Viktor. Em busca de sentido. Petrópolis: Vozes, 2011.
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2016.
GOETHE, Johann Wolfgang von. Os sofrimentos do jovem Werther. São Paulo: Penguin, 2012.
DURKHEIM, Émile. O suicídio. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
DSM-5. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Porto Alegre: Artmed, 2014.
CID-11. Classificação Internacional de Doenças. OMS, 2022.
WACHOWSKI, L. & WACHOWSKI, L. Matrix. EUA: Warner Bros, 1999 (filme).
CONSTANTINE. Dir.: Francis Lawrence. EUA: Warner Bros, 2005 (filme).
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