Amor Fati sem pedra: quando o destino não é escolha
Pode ser o mano das métricas, o mestre das teses, o brabo do feed. Mas, diante de quem voltou do nada, esquece o script: é humano com humano.
Nietzsche propôs o Amor Fati – amar o destino, não apenas suportá-lo, mas afirmá-lo integralmente, “eu quero que tudo se repita eternamente”. Viktor Frankl dizia “quem tem um porquê aguenta qualquer como”. Camus escreveu que é preciso imaginar Sísifo feliz empurrando a pedra. Essas frases, arrancadas de contexto, viraram slogans motivacionais. Mas e quando não há pedra? Quando o destino não foi escolha? Quando o porquê desapareceu junto com o como?
No estado-limite – coma, crises neurológicas, tentativas involuntárias de autoextermínio – não há destino para amar. O sujeito volta do apagão com linguagem, mas sem narrativa. Diz “acordei na geleia, irmão… não tinha nada lá”. Não há pílula azul nem vermelha. Não há Morpheus para telefonar. Há apenas o deserto do real. E o real não vem com manual de instruções nem com hashtag de superação.
Freud diria que trauma é acontecimento sem representação. Kierkegaard chamou de angústia o nada diante da liberdade. Cioran descreveu o cume do desespero. Becker mostrou que construímos símbolos para negar a morte. Bauman mostrou que na pós-modernidade líquida os símbolos derretem. Zuboff mostrou que o capitalismo de vigilância transforma sofrimento em métrica. Resultado: até campanhas de prevenção podem reforçar a espetacularização da dor. Um “Setembro Amarelo” líquido, sem pedra, sem Amor Fati.
Nietzsche dizia “o que não me mata me fortalece”. Mas o estado-limite desmonta essa promessa: o que não mata pode deixar sequelas, déficit, trauma. Frankl dizia “quem tem um porquê aguenta qualquer como”. Mas e quando não há porquê nem como? O estado-limite não fortalece; às vezes fragiliza. O desafio ético não é exigir que o sujeito diga “amei meu trauma”; é oferecer presença mínima para que, se houver reconstrução, seja do próprio sujeito e não imposição nossa.
Religião como moralidade também falha. A “Oração da Serenidade” fala em aceitar, mudar e distinguir. Mas como aceitar ou mudar o nada? Como distinguir quando não há categorias? O risco é cair em moralismos ou autoajuda que não seguram ninguém. O convite ético é outro: não preencher o vazio com falsas verdades, mas sustentar presença. Ser, ainda que provisoriamente, esse outro que não se retira.
Isso não é glamourizar a crise. Não é vender esperança falsa. É reconhecer que há suicídios involuntários — biológicos, epilépticos, iatrogênicos — e suicídios sociais — cancelamentos, exclusões, diagnósticos-rótulos. Prevenção não é slogan; é vínculo. Não é “dar sentido” forçado; é sustentar o indizível até que, se houver destino de novo, o sujeito possa afirmá-lo por si mesmo.
Falar “mano”, “irmã”, “parça” não é banalizar; é abrir porta. É reconhecer que linguagem acadêmica sozinha não toca quem está ali com medo. Um humano diante de outro humano, é isso. Não é autoajuda nem coaching. É responsabilidade clínica e social. É criar tempo, ambiente e escuta para que mesmo o nada — o “não tem nada lá” — possa ser sustentado sem se transformar em exclusão.
Se queremos prevenção real, precisamos assumir a tensão: campanhas não bastam, algoritmos não cuidam, símbolos frágeis não seguram vidas. O cuidado ético é o encontro, mesmo breve, mesmo provisório, que permite ao sujeito continuar existindo discursivamente enquanto atravessa sua materialidade vulnerável. Não é glamour; é prevenção real. Se não há Amor Fati, sejamos ao menos chão provisório.
Lembre-se:
Se você estiver em sofrimento intenso ou pensando em suicídio, procure ajuda imediata.
No Brasil, o CVV atende 24h pelo telefone 188 (ligação gratuita) ou pelo site www.cvv.org.br.
Em emergências, procure um hospital ou o SAMU (192). Se estiver fora do Brasil, busque os serviços de saúde mental de sua região.
#maispertodaignorancia
#ianaoeprofissionaldasaudemental
José Antônio Lucindo da Silva – Psicólogo Clínico | CRP 06/172551
Araraquara – SP | @joseantoniolucindodasilva
Blog: maispertodaignorancia.blogspot.com
Referências:
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
FRANKL, Viktor. Em busca de sentido. Petrópolis: Vozes, 2011.
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Record, 2016.
BECKER, Ernest. A negação da morte. Rio de Janeiro: Record, 2019.
KIERKEGAARD, Søren. O conceito de angústia. Petrópolis: Vozes, 2013.
CIORAN, Emil. Nos cumes do desespero. São Paulo: Hedra, 2011.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
DSM-5. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Porto Alegre: Artmed, 2014.
CID-11. Classificação Internacional de Doenças. OMS, 2022.
WACHOWSKI, L. & WACHOWSKI, L. Matrix. EUA: Warner Bros, 1999 (filme).
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