Narrativas Invisíveis do Colapso:
Uma leitura psicobiossocial da performatividade emocional contemporânea
Resumo:
Este artigo propõe uma análise psicobiossocial crítica das construções narrativas associadas à patologização contemporânea do sofrimento, com base em uma entrevista concedida por um sujeito anônimo em mídia nacional. Sem identificar nomes próprios, buscamos tensionar o apagamento das dimensões biológicas, sociais e simbólicas que estruturam o adoecimento psíquico. Fundamentado nas obras de Freud, Kierkegaard, Bauman, Byung-Chul Han, Zuboff e documentos clínicos como o DSM-V e CID-11, o texto explora o paradoxo entre a vivência do colapso e sua estetização performática no discurso médico-midiático. Evidencia-se a carência de um modelo integrativo que contemple os dados clínicos e sociais em sua radical complexidade, sem reducionismos diagnósticos. Conclui-se com a necessidade de reinscrever o sofrimento para além da lógica classificatória, considerando o sujeito em sua experiência histórica e existencial.
Palavras-chave: sofrimento psíquico, narrativa, performatividade, diagnóstico, psicobiossocial.
1. Introdução
A patologização do sofrimento tornou-se um fenômeno central no debate sobre saúde mental. Contudo, pouco se discute sobre as implicações psicobiossociais de tais processos. Este artigo parte da fala de um sujeito não identificado que, em entrevista televisionada, relatou sua trajetória marcada por episódios depressivos, dependência química e diagnóstico de "altas habilidades". Através dessa narrativa, problematizamos as ausências: o que não se diz quando se explica demais?
2. Invisibilidade das camadas sociais no discurso clínico
A narrativa apresentada constrói uma linha causal retrospectiva: desde a infância "diferente" até o diagnóstico de superdotação, a história se fecha num circuito interpretativo que parece dar conta de todo sofrimento vivenciado. No entanto, essa operação narrativa elimina a materialidade social da dor.
Segundo dados da OMS (2022), o Brasil registra anualmente cerca de 88 mil mortes por causas associadas ao álcool. A Pesquisa Nacional de Saúde do IBGE (2019) aponta que 26,4% da população adulta consome álcool semanalmente, e a maior parte dessas pessoas jamais será submetida a qualquer teste neuropsicológico. No entanto, seus colapsos também são reais, suas dores também são legítimas — ainda que não sejam narráveis com glamour.
3. A angústia performativa e o sujeito de exceção
Em O Mal-Estar na Civilização, Freud propõe que o sofrimento humano decorre da tensão entre pulsão e repressão. O uso de substâncias, nesse contexto, seria uma forma de escapar do excesso de repressão civilizatória. No entanto, o discurso clínico contemporâneo prefere deslocar esse conflito para o campo do excepcional: o sujeito que sofre é, na verdade, alguém com um "cérebro diferente".
Essa lógica é reforçada por André Green (1993), que descreve o narcisismo de morte como uma resposta ao não reconhecimento simbólico. O diagnóstico de "altas habilidades" oferece o reconhecimento que faltou — mas o oferece sob a condição de que o sofrimento seja estetizado. Surge, então, o sujeito de exceção: aquele que pode adoecer, desde que o faça com prestígio.
4. A estetização do colapso e o apagamento do presente
A entrevista sugere que a única vida vivida foi a que ficou atrás do sujeito. A infância solitária, os pensamentos "demais", o sentimento de inadequação — tudo isso passa a ser reconfigurado como sintoma prévio de uma genialidade não reconhecida. O presente da dor, da compulsão, do álcool, desaparece sob a lógica narrativa.
Em A Crise da Narração, Han (2020) observa que a experiência cedeu lugar à informação. O sujeito não quer mais contar o que sente, mas explicar-se por meio de dados, de laudos, de números. O colapso é recoberto por um verniz técnico, e a angústia, que antes exigia escuta, agora exige compartilhamento.
5. O sujeito como produto e o diagnóstico como dispositivo
A crítica de Zuboff ao capitalismo de vigilância é fundamental aqui: os dados emocionais tornam-se capital. A dor não é mais um sintoma, mas um ativo que pode gerar engajamento. O diagnóstico, nesse cenário, deixa de ser apenas ferramenta clínica e passa a ser dispositivo de validação subjetiva.
Em O Mal-Estar da Pós-Modernidade, Bauman destaca que o fracasso, em nossa época, não é estrutural, mas pessoal. O diagnóstico de superdotação cumpre a função de salvar o sujeito da falência moral, elevando-o à condição de sensível demais para o mundo banal. Assim, evita-se o confronto com a banalidade do sofrimento comum.
6. O paradoxo existencial: Kierkegaard e a vida que não se vive
Kierkegaard, em O Conceito de Angústia, descreve o desespero como uma recusa à própria existência. Quando o sujeito prefere organizar o passado com explicações externas (QI, testes, laudos), ele pode estar recusando a incerteza do presente. A pergunta que se impõe é: quem é o sujeito agora, sem o enredo pronto?
O paradoxo é cruel: o diagnóstico, que deveria abrir possibilidades, serve para fechar sentidos. Ele reorganiza a vida como se esta já estivesse escrita, como se não houvesse mais risco, nem abismo, nem possibilidade.
7. Considerações finais
O que se esconde por trás da narrativa do sujeito de exceção é um incômodo mais profundo: a dor ordinária, sem laudo nem aplauso. O projeto psicobiossocial que aqui propomos exige mais do que classificações — exige escuta, tempo, historicidade. Exige reconhecer que nem todo sofrimento é performático. Que há colapsos que não cabem em tela.
É preciso dizer: há algo de cruel em exigir genialidade para que a dor seja reconhecida.
E mais cruel ainda é esquecer os milhares que, sem diagnóstico elevado, bebem até o fim — em silêncio.
Referências bibliográficas:
BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Obras Completas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
GREEN, André. Narcisismo de Vida, Narcisismo de Morte. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1993.
HAN, Byung-Chul. A Crise da Narração. Lisboa: Relógio D’Água, 2020.
HAN, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
KIERKEGAARD, Søren. O Conceito de Angústia. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Relatório Mundial sobre Álcool e Saúde. Genebra: OMS, 2022.
ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
IBGE. Pesquisa Nacional de Saúde – PNS 2019.
Brasília: IBGE, 2020.
DSM-5. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. Porto Alegre: Artmed, 2014.
CID-11. Classificação Internacional de Doenças. Genebra: OMS, 2022.
Palavras-chave :
Sofrimento, diagnóstico, QI, alcoolismo, angústia, performatividade, narrativa, genialidade, clínica, subjetividade, colapso, neuropsicologia, discurso, infância, laudo, vigilância, saúde mental, narcisismo, exceção, sistema, compulsão, superdotação, ironia, identidade, mídia, trauma, normalidade, psicopatologia, repetição, algoritmo, invisibilidade, escuta, verdade, psiquiatria, existência, ansiedade, autoimagem, estatística, exclusão, discurso clínico, consumo, depressão, cansaço, controle, desamparo
Nota sobre o autor
José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), escritor e pesquisador independente. Fundador do projeto “Mais Perto da Ignorância”, atua na intersecção entre psicanálise, filosofia e crítica social, desenvolvendo uma linha discursiva que investiga os atravessamentos entre sofrimento psíquico, economia afetiva e tecnopolítica da subjetividade. Seus textos desconstroem narrativas performáticas sobre saúde mental, abordando temas como narcisismo digital, medicalização do incômodo, vigilância emocional e angústia como forma de resistência. Longe de qualquer proposta de cura ou otimismo pedagógico, Lucindo argumenta que o mal-estar é uma condição inegociável da experiência humana — e não um erro a ser eliminado. É autor de ensaios, roteiros, artigos e imagens discursivas que circulam por redes sociais, zines, podcasts e produções acadêmicas.
Atualmente, trabalha com a estética da dúvida, a ironia como método e a melancolia como força.
#maispertodaignorancia
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