Avançar para o conteúdo principal

Rolando o feed até o esgotamento: quando o prazer mínimo é a nossa sentença máxima

Rolando o feed até o esgotamento: quando o prazer mínimo é a nossa sentença máxima


É curioso — ou talvez trágico — perceber como a primeira ação de milhões de brasileiros ao acordar não é respirar fundo, espreguiçar-se ou sentir a luz da manhã, mas sim deslizar o dedo por uma tela brilhante. Um gesto simples, quase imperceptível, que, na verdade, condensa um século de transformações na economia psíquica, social e política. Segundo levantamento das empresas We Are Social e Meltwater, em 2024 havia 187,9 milhões de internautas no Brasil — 86,6% da população — conectados em média 9 horas e 13 minutos por dia, majoritariamente por smartphones. É o equivalente a passar mais de um terço da vida desperto mergulhado em um oceano algorítmico, onde a superfície reluz, mas o fundo é invisível.


Essa vida atravessada pela conectividade não é neutra. Ela redefine o que entendemos por corpo, tempo, prazer e até sofrimento. Freud, em O mal-estar na civilização, já advertia que a técnica ampliaria nossas capacidades, mas, paradoxalmente, também os caminhos para a infelicidade. O que ele não poderia prever é que, no século XXI, o mal-estar não viria apenas de uma repressão externa, mas da autoinflição: nós mesmos, voluntariamente, tornamo-nos nossos próprios carcereiros. Ninguém mais precisa vigiar quando é o próprio sujeito que sente culpa por não produzir, por não postar, por não ser visto.


Byung-Chul Han descreve a sociedade do desempenho como um sistema no qual o indivíduo não é mais explorado por um outro opressor externo, mas por si mesmo. A lógica da exploração foi internalizada. O sujeito contemporâneo é simultaneamente senhor e escravo, empreendedor de si e sua própria mercadoria. E é nesse cenário que a promessa de liberdade digital revela sua farsa: estamos mais vigiados do que nunca, mas agora sob a forma de autoexposição voluntária, legitimada pelo “direito” de se mostrar.


Zygmunt Bauman, por sua vez, já havia diagnosticado a liquidez das relações humanas: vínculos que se desfazem antes mesmo de amadurecerem, substituídos por conexões instantâneas que funcionam mais como mercadorias de entretenimento do que como laços sociais. Nas redes, a amizade é medida por um contador numérico, a admiração por um emoji e a exclusão por um clique silencioso. Não é à toa que o texto original menciona a “escrotidão autorizada”: racismo, machismo e homofobia são expostos com a segurança de um anonimato parcial e sem as consequências corporais de um confronto físico.


O que Marx chamaria de fetichismo da mercadoria encontra aqui sua versão digital: não apenas as mercadorias escondem as relações sociais que as produzem, mas o próprio “eu” torna-se um produto, embalado em fotos, legendas e vídeos que simulam autenticidade. Shoshana Zuboff, em A Era do Capitalismo de Vigilância, detalha como essa transformação não é apenas simbólica, mas estrutural: dados pessoais, comportamentos e padrões de consumo são extraídos, processados e vendidos. A suposta liberdade de expressão é, na verdade, uma colheita de informação travestida de participação.


Se, como disse André Green, o narcisismo moderno é atravessado pela pulsão de morte, nas redes essa pulsão se manifesta em um loop paradoxal: buscamos visibilidade para provar nossa existência, mas essa visibilidade nos dissolve na massa indistinta de conteúdo descartável. A cada publicação, o eu se expande e se esvazia simultaneamente. Ernest Becker, ao falar sobre a negação da morte, mostraria que vivemos hoje cercados por rituais digitais que funcionam como talismãs contra o esquecimento: stories que desaparecem em 24 horas, mas que prometem, por um instante, a ilusão de permanência.


O texto base já pontuava que o algoritmo, ao regular as interações, elimina o contraditório e as “zonas de sombra” que enriquecem a experiência humana. E aqui há algo de profundamente político: sem sombra, não há mistério; sem silêncio, não há pensamento. Dalgalarrondo, ao estudar os impactos neuropsiquiátricos do excesso de estímulos, lembra que o cérebro humano, ao contrário das máquinas, não foi projetado para um fluxo constante de informação fragmentada. A consequência é uma mente em estado crônico de dispersão, incapaz de sustentar atenção e reflexão prolongadas.


O ambiente digital não só autoriza, mas incentiva o julgamento sumário. Cancelamentos e linchamentos virtuais funcionam como válvulas de escape para frustrações e impotências acumuladas. Ao decidir pelo “desaparecimento simbólico” de alguém, o indivíduo experimenta uma simulação de poder que, na vida material, raramente possui. Trata-se de uma catarse instantânea, mas que não altera em nada as estruturas sociais que sustentam o próprio mal-estar. Pelo contrário, elas se reforçam: o ódio se converte em engajamento, e o engajamento em lucro.


Cioran dizia que “viver é perder-se num labirinto de ilusões”. As redes sociais são, talvez, a arquitetura mais perfeita dessa sentença. A cada clique, acreditamos nos aproximar de algo ou de alguém, mas na verdade nos afastamos de qualquer experiência que não possa ser traduzida em métricas. E enquanto o corpo biológico segue sujeito ao tempo e à morte, o corpo digital se multiplica em imagens que, embora eternas nos servidores, não carregam substância.


O retrato que emerge é o de uma sociedade que não apenas aceita, mas normaliza o esgotamento como preço da visibilidade. A produtividade incessante não é mais apenas profissional; é existencial. O descanso, quando acontece, já é calculado em função do retorno: o que vou postar depois? Que narrativa vou criar sobre esse momento? Mesmo a intimidade é transformada em conteúdo — e, portanto, em mercadoria.


O diagnóstico é incômodo, mas inevitável: a hiperconexão não nos tornou mais próximos, mas mais reféns de um espelho que exige atualização constante. Ao rolar o feed pela milésima vez no dia, talvez não estejamos buscando informação, mas apenas confirmando que ainda existimos dentro de um sistema que só reconhece aquilo que pode ser medido, armazenado e monetizado. E se essa existência vale a pena ou não, já não parece ser a questão. O importante é manter o dedo em movimento.



Referências:


BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.


BECKER, Ernest. A negação da morte. Rio de Janeiro: Record, 2007.


CIORAN, Emil. Breviário de decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.


DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. Porto Alegre: Artmed, 2008.


FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1996.


GREEN, André. O discurso vivo: a concepção psicanalítica do afeto. Rio de Janeiro: Imago, 1982.


HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.


MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013.


ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

BARROS, Douglas. 


“Quando nos tornamos nossos próprios carrascos?”. Revista Cult, 2024.



Nota sobre o autor


José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), escritor e idealizador do projeto Mais Perto da Ignorância, dedicado a análises críticas e reflexivas sobre a cultura contemporânea, tecnologia e subjetividade, explorando as tensões entre corpo, desejo e algoritmos.



Palavras-chave


redes sociais, hiperconexão, cansaço digital, sociedade do desempenho, vigilância algorítmica, narcisismo digital, capitalismo de vigilância, cancelamento online, mal-estar contemporâneo, fetichismo da mercadoria




Link original: https://revistacult.uol.com.br/home/quando-nos-tornamos-nossos-proprios-carrascos




Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade Assista o vídeo em nosso canal no YouTube Introdução A cada dia me questiono mais sobre a relação entre a tecnologia e a construção da identidade. Se antes o trabalho era um elemento fundamental na compreensão da realidade, como Freud argumentava, hoje vejo que esse vínculo está se desfazendo diante da ascensão da inteligência artificial e das redes discursivas. A materialidade da experiência é gradualmente substituída por discursos digitais, onde a identidade do sujeito se molda a partir de impulsos momentâneos amplificados por algoritmos. Bauman (1991), ao analisar a modernidade e o Holocausto, mostrou como a racionalidade técnica foi usada para organizar processos de exclusão em grande escala. Hoje, percebo que essa exclusão não ocorre mais por burocracias formais, mas pela lógica de filtragem algorítmica, que seleciona quem merece existir dentro da esfera pública digita...

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

ANÁLISE DOS FILMES "MATRIX" SOB A PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA CONTEMPORÂNEA

ANÁLISE DOS FILMES "MATRIX" SOB A PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA CONTEMPORÂNEA Resumo Este artigo apresenta uma análise dos filmes da série "Matrix" à luz da psicologia contemporânea, explorando temas como identidade, realidade e a influência da tecnologia na experiência humana. Através de uma abordagem teórica fundamentada em conceitos psicológicos, busca-se compreender como a narrativa cinematográfica reflete e dialoga com questões existenciais e comportamentais da sociedade atual. Palavras-chave: Matrix, psicologia contemporânea, identidade, realidade, tecnologia. 1. Introdução A trilogia "Matrix", iniciada em 1999 pelas irmãs Wachowski, revolucionou o cinema de ficção científica ao abordar questões profundas sobre a natureza da realidade e da identidade humana. Como psicólogo, percebo que esses filmes oferecem um rico material para reflexão sobre temas centrais da psicologia contemporânea, especialmente no que tange à construção do self e à infl...