Quando o algoritmo redescobre o que a vida já mostrava
Tema:
A adultização infantil não é um tema novato. É uma ferida antiga que só se tornou “notícia” quando entra no palco simbólico das redes sociais. Programas como Globo Repórter, Jornal Nacional, jornais como Folha de S. Paulo e Estadão já expunham crianças em situações adultas: vendendo no semáforo, catando recicláveis, ocupando espaços que deveriam ser de brincar.
Mas isso estava fora do frame. A mesa existia, mas só ganhou luz quando alguém apontou a câmera para ela. Surgiu o viral. E o “real” perdeu fôlego para a “visibilidade”.
Dados oficiais que não viralizam
O censo contínuo da PNAD Contínua (IBGE, 2023) revelou que 1,607 milhão de crianças e adolescentes (5–17 anos) permaneciam em trabalho infantil — o menor número da década, ainda que alarmante. Isso representa 4,2% dessa faixa etária. Mesmo com queda de 14,6% em relação a 2022, são corpos reais impactados por jornadas, economia informal e exclusão escolar.
O Ministério do Trabalho também confirmou: em 2023, o trabalho infantil caiu em 23 de 27 estados, com destaque para Amapá, RN, SC e ES — mas persistiu, afetando 1,6 milhão de crianças.
Além disso, das 1,6 milhão de crianças trabalhadoras, 586 mil estavam em condições perigosas ou extremas, uma redução de 22,5%, mas ainda um número sólido de exploração material.
Adultização que não chega ao feed
Enquanto essas cifras existiam em relatórios, o debate público ganhou calor apenas quando viralizaram cenas, coreografias ou maquiagens precoces que se encaixam no “trend-shock”. A oversimplificação simbólica da adultização — como constatado por juristas do TJDFT — impõe padrões de comportamento “inadequados para a idade”, causando transtornos psicológicos como ansiedade, distorção da autoimagem e baixa autoestima.
Hipersexualização em mídia e cultura
Associações como Brasil de Fato destacam que a erotização infantil já estava presente em campanhas publicitárias, ensaios com roupas sensuais e materiais que confundem infância com mimeses adultas. A sociedade consumia, mas não escandalizava até o algoritmo apitar.
Aspecto psicossocial da cultura contemporânea
Freud diria que esse espanto tardio é o retorno do recalcado, projetado como espetáculo.
Para Bauman, é a liquefação social que transforma infância em performance líquida.
Byung-Chul Han veria a criança como avatar de um Eu que monetiza afeto.
Zuboff chamaria isso de capitalismo de vigilância infantil — cada visualização, uma mina de dados.
Green argumentaria que há uma falência do Eu infantil, exposto e sem narrativa própria.
Conclusão crítica
Nada do que viralizou foi novo. A exploração existia, foi documentada. Mas só virou “notícia” quando se tornou espetáculo simbólico. Quem adora o real invisível, permaneceu invisível. O algoritmo não revela; ele escolhe. A infância material permanece — mas visibilidade virou condição para indignação.
Referências:
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Como estava o trabalho infantil no Brasil em 2023? Brasília, 11 nov. 2024. Disponível em: https://educa.ibge.gov.br/jovens/materias-especiais/22463-como-estava-o-trabalho-infantil-no-brasil-em‑2023.html. Acesso em: 20 ago. 2025.
BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Estudo aponta redução de 14,6% no trabalho infantil no Brasil em 2023. Brasília, 5 nov. 2024. Disponível em: https://www.gov.br/secom/pt‑br/assuntos/noticias/2024/11/estudo‑aponta‑reducao‑de‑14‑6‑no‑trabalho‑infantil‑no‑brasil‑em‑2023. Acesso em: 20 ago. 2025.
LIVRE DE TRABALHO INFANTIL. Estatísticas sobre trabalho infantil. 2023. Disponível em: https://livredetrabalhoinfantil.org.br/trabalho‑infantil/estatisticas/. Acesso em: 20 ago. 2025.
TJDFT. Adultização infantil: como reconhecer, prevenir e proteger crianças e adolescentes. 18 ago. 2025. Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2025/agosto/adultizacao-infantil-como‑reconhecer‑prevenir‑e‑proteger-criancas-e-adolescentes. Acesso em: 20 ago. 2025.
BRAZIL DE FATO. Adultização infantil e erotização da sociedade de consumo: o alerta que veio das redes. 13 ago. 2025. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2025/08/13/adultizacao-infantil-e-erotizacao-da-sociedade-de-consumo-o-alerta-que-veio-das‑redes/. Acesso em: 20 ago. 2025.
Nota sobre o autor:
Este texto segue o espírito do Mais Perto da Ignorância: cru, reflexivo, sem consolo. Não busca expor o influencer, mas iluminar os escombros que já estavam lá — enquanto o espetáculo se construía.
Palavras-chave: adultização infantil, trabalho infantil Brasil, erotização precoce, capital de vigilância, algoritmo, infância visível.
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