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Quando a ciência vira dívida e a dúvida vira angústia

Quando a ciência vira dívida e a dúvida vira angústia








https://www.reuters.com/article/idUSL1N3S00TY

Quando a ciência vira dívida e a dúvida vira angústia

Ironia ;

Você confiaria seu futuro a cientistas e a juros? A ciência emergindo como o último alento de um país exausto não alivia: ela agrava. Porque hoje ela não cura—ela dispara uma dívida. E com ela, a angústia de saber que nada se paga, apenas se enrola.

I. Entre promessas técnicas e o peso da dívida

Há pouco, o discurso heroico da tecnociência nacional chegou ao clímax retórico: “vamos ser autossuficientes, romper com a dependência intelectual global, labutar por satélites nacionais”. Porém, é óbvio que a retórica ignora a necessidade básica — escutar o sujeito que sofre. Enquanto isso, o Tesouro Nacional divulgou que a dívida pública federal subiu 1,44% em abril de 2025, encerrando o mês em, R$ 7,617 trilhões. Em apenas um mês, foram R $ 70 bilhões de juros incorporados ao estoque.

Esse número não é abstrato: é seu, meu, público. E enquanto celebram a ciência como salvação, o frágil tom da finitude financeira ecoa nos cofres estourando de juros.

Em maio, a dívida chegou a  R$ 7,67 trilhões, e já em junho ultrapassou  R$ 7,88 trilhões. 1311-0Resumo: o Brasil não paga sua dívida. Ele a rola. E mais: é quase metade dela atrelada à taxa Selic, hoje em 15% ao ano  , 1461-0juros que viram combustão pública - como já explicava a imprensa financeira  . Cada ponto da Selic adiciona cerca de R $ 50 bi de estoque à dívida.

Essa cifra não impressiona apenas pelo tamanho: impressiona por revelar o que Byung-Chul Han define como “paradoxo do débito”: em vez de saudável, a dívida torna-se estrutura, convertendo qualquer escuta política em alvorecer da dívida e da execução técnica. A ciência não liberta: ela colabora para o esgotamento do arrocho fiscal.

II. O sujeito exaurido entre performance e angústia

O público-alvo desse texto é a geração dos 25 aos 45 anos: já viveu crises econômicas, tentou “se reiventar” em mil planos, cansou de promessa fácil e empatou com a exigência permanente de performance. Não clasifica isso como “síndrome”, mas sente diário desgaste.

1559-4 Dados do IBGE e da PNS 2013/2019 apontam que a prevalência de depressão entre adultos jovens (18-24) quase dobrou no período, de 5,6% para 10,9%. Nesse espectro, mulheres jovens passaram de 8,3% para 15,6%.

Vem crescendo a angústia, o tédio sustentando a produtividade — não à toa esse público é apto para o discurso da “ciência como redenção”: tecnologia supõe esperança, e de esperança estamos exauridos.

2464-2 Estudos com profissionais da saúde apontam ansiedade moderada-laboral em 37% e estresse alto em 42%. Relaciona-se a sobrecarga, falta de autonomia, e o exílio afetivo institucional: uma lógica que André Green chamou de narcisismo de morte, onde o burnout substitui o desejo.

A exigência obrigatória de desempenho não permite a dúvida. “Você para de pensar e começa a executar” — como um script de produção industrial. Por isso as fábricas de tecnologia serão incapazes de responder à pergunta freudiana: o que quer realmente quem quer ser autônomo?

III. A dívida como forma de depressão pública

Uma dívida tão gigantesca é muito mais que fiscal: é simbólica. Ela resume uma falência coletiva da esperança no sujeito. A política monetária e a técnica tornam-se sacerdócio neoliberal, e os juros, sacrifício diário. É como se o sufoco sobrevivesse em cada planilha.

Marx dizia que o capital se autorreproduz; hoje ele se autoprotege: cada real de débito exige mais juízo financeiro, menos juro moral. A Selic não cresce para conter inflação, mas para fornecer à dívida combustível para crescer. Resultado: a técnica não corrige o real; reproduz o déficit.

Bauman alertava para a liquidez da modernidade: pertencimento é instável, performance é incerta, e qualquer gripezinha emocional vira motivo para atualização da autoestima digital. O sofrimento não é vivido: transformado em post, relato motivacional, viral. Mas isso transforma o corpo coletivo num campus de insônia fraturada.

Ao usar os dados da dívida como um palco, revelamos que a dívida — pública — é o exercício contemporâneo da angústia coletiva capitalizada. Ela é a cifra, mas também o sintoma: não cobra apenas juros, cobra que você se anule para ela.

IV. Ciência que silencia versus dúvida que resiste

Nicolelis falou sobre autonomia tecnológica; mas esqueceu que ciência escuta. Aquele que forçou o discurso técnico como solução total ficou sem ouvir o sujeito que sofre. Uma bicicleta cabe em qualquer piada; uma ciência não escuta, incapaz de ser veículo de metáfora para angústias reais.

Zuboff nomeou esse sistema: capitalismo de vigilância — o dado substitui o sujeito. Na saúde mental popular, não se observa gente sana sendo ouvida, mas gente sensível sendo quemada com algoritmos de gestão. E a grande parte da dívida se transforma em penalização técnico-financeira, prisional.

Essa ciência disfarçada de salvação faz o seguinte: exige fé no algoritmo e paga com recusa da dúvida. Mas como nos lembra Cioran: a ciência que não inclui o negativo não é ciência—é superstição secular. E o vazio em sua base não se evidencia: ele reverbera nas gargantas que suspiram por explicação.

Fechamento suspenso

Não falo contra a ciência; falo contra o mito da redenção técnica. Enquanto nos enfeitiçam com promessas de autonomia tecnológica, uma dívida nos consome — não só no bolso, mas na imaginação.

Pode ser que batamos os punhos no peito, digam que “ciência paga a dívida, ciência resolve o país”. Mas já foi provado: cada ponto da Selic é R $ 50 bi, cada PIB planejado corre atrás dos juros. A dúvida aqui, porém, é exigência: não clamor por alívio, mas reverberação de quem sente que negar a angústia é negar a vida.

Porque se tudo que resta for “salvar o Brasil com tecnologia”, continuaremos a poupá-lo do “peso do existir”, reduzindo o sujeito a saldo. A dívida talvez nunca seja paga. Mas que ao menos possamos resistir ao delírio estado-autossuficiência com a dúvida bem colocada, antes que ela vire juro.

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

CIORAN, É. Breviário de Decomposição. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

FREUD, Sigmund. O mal‑estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1930.

GREEN, André. Narcisismo de Vida, Narcisismo de Morte. São Paulo: Escuta, 1988.

HAN, Byung‑Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.

MARX, Karl. O Capital, Vol. 1. São Paulo: Boitempo, 2013.

ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

2853-20 OLIVEIRA, B. L. C. A. et al. Prevalence of depressive symptoms among young adults in Brazil. Revista Brasileira de Epidemiologia, 2024;27:e240045.

REUTERS. Dívida pública federal sobe 1,4% em abril, a R $7029-1, 7,6 tri, diz Tesouro. Brasília, 28 maio 2025.

AGÊNCIA BRASIL. Dívida pública sobe 0,71% em maio e aproxima-se de R $7154-1, 7,7 trilhões. Brasília, 27 junho 2025.

7286-0 CNN BRASIL. Com elevação da Selic a 15%, economistas estimam impacto bilionário na dívida pública. São Paulo, 19 junho 2025.

7434-0, MUNHOZ, O. L. et al. Prevalência e associação entre estresse e ansiedade em profissionais de enfermagem perioperatória. Texto & Contexto Enfermagem, 2024;33:e20230347 .

Nota sobre o autor:

José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador independente e mentor do projeto Mais perto da ignorância. Atua sob lentes psicanalíticas, existencialistas e niilistas, investigando o vazio sobre o qual o discurso digital tenta redundar esperança.

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Palavras‑chave

ciência crítica, dívida pública, angústia social, burnout, freud, bauman, han, green, capital de vigilância, depressão Brasil, performance emocional

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