Proibir ou performar? O novo moralismo digital australiano
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À primeira vista, a proposta australiana de banir adolescentes de redes sociais parece uma tentativa tardia de salvar um sujeito já em decomposição. Seria um gesto de cuidado, se não estivesse encharcado de controle. Seria uma política de proteção, se não soasse como mais uma performance de virtude neoliberal. Mas a história é outra.
Segundo o projeto do governo de Victoria, jovens com menos de 16 anos só poderão acessar redes sociais mediante autorização parental comprovada por identificação digital. Parece razoável — afinal, quem não quer proteger “nossas crianças”? O problema é que essa retórica esconde um duplo movimento: o da terceirização da autoridade moral e o da intensificação do rastreamento identitário. Em nome da infância, instala-se mais um algoritmo de vigilância.
Freud já nos alertava: onde há repressão, há retorno do recalcado. A tentativa de blindar os adolescentes do mundo virtual ignora o que esse mundo representa: um espaço de espelhamento narcísico, sim, mas também de elaboração (por vezes caótica) da própria subjetividade. Proibir o acesso é como interditar o espelho a quem busca um rosto.
Em Narcisismo de vida, narcisismo de morte, André Green delineia esse impasse com precisão: quando o investimento libidinal no objeto é sistematicamente frustrado, resta a pulsão de morte. A interdição autoritária, mesmo que travestida de cuidado, pode converter-se em terreno fértil para o desamparo. Retira-se o gozo e não se oferece nada em troca — senão o ressentimento parental delegado à máquina.
Pondé, em A Era do Ressentimento, completa o quadro: “O bem virou mais um objeto de consumo.” A medida australiana, mais do que proteger, capitaliza o medo. É menos uma política de saúde mental e mais uma estratégia de capital político: performar proteção enquanto se fortalece o aparato de vigilância e controle sobre corpos juvenis.
Zygmunt Bauman, em Amor Líquido, apontava que vivemos em tempos de conexões frágeis e vínculos descartáveis. Ora, o gesto de banir adolescentes das redes sociais não rompe com essa lógica — ele a repete. Em vez de ensinar vínculo, desconecta. Em vez de educar para o limite, impõe o corte. Como se desplugando o jovem do mundo se resolvesse o que o mundo já não sabe conter: o colapso da escuta, o excesso de estímulo e a carência de elaboração simbólica.
No fundo, o que se tenta proibir não é o acesso ao TikTok, mas o próprio sintoma. E como bem sabemos — ao menos nós, os que ainda acreditam na psicanálise —, proibir o sintoma é acelerar o acting-out.
O sujeito contemporâneo — já suficientemente atravessado por algoritmos, diagnósticos precoces e dopamina de rolagem — não precisa de mais um botão de "bloqueio". Precisa de presença simbólica. Precisa de adultos que falem menos de “limites tecnológicos” e mais de “limites subjetivos”.
Mas isso dá trabalho. E nesse trabalho, nem sempre há curtidas.
Referências bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Tradução de Luiz Sergio Coelho de Souza. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2002.
PONDÉ, Luiz Felipe. A era do ressentimento: uma agenda para o contemporâneo. São Paulo: LeYa, 2014.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: Obras completas, v. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
Nota sobre o autor
José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador do projeto “Mais perto da ignorância”. Argumenta na angústia como liberdade.
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controle digital, adolescência e algoritmo, repressão simbólica, narcisismo infantil, vigilância emocional, política do medo, saúde mental performática, André Green, Bauman, Freud, rede social, política parental,
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