Avançar para o conteúdo principal

Proibir ou performar? O novo moralismo digital australiano


Proibir ou performar? O novo moralismo digital australiano


Link original: https://share.google/vL1ImOBZ4iDJJXQ41


#maispertodaignorancia

À primeira vista, a proposta australiana de banir adolescentes de redes sociais parece uma tentativa tardia de salvar um sujeito já em decomposição. Seria um gesto de cuidado, se não estivesse encharcado de controle. Seria uma política de proteção, se não soasse como mais uma performance de virtude neoliberal. Mas a história é outra.


Segundo o projeto do governo de Victoria, jovens com menos de 16 anos só poderão acessar redes sociais mediante autorização parental comprovada por identificação digital. Parece razoável — afinal, quem não quer proteger “nossas crianças”? O problema é que essa retórica esconde um duplo movimento: o da terceirização da autoridade moral e o da intensificação do rastreamento identitário. Em nome da infância, instala-se mais um algoritmo de vigilância.


Freud já nos alertava: onde há repressão, há retorno do recalcado. A tentativa de blindar os adolescentes do mundo virtual ignora o que esse mundo representa: um espaço de espelhamento narcísico, sim, mas também de elaboração (por vezes caótica) da própria subjetividade. Proibir o acesso é como interditar o espelho a quem busca um rosto.


Em Narcisismo de vida, narcisismo de morte, André Green delineia esse impasse com precisão: quando o investimento libidinal no objeto é sistematicamente frustrado, resta a pulsão de morte. A interdição autoritária, mesmo que travestida de cuidado, pode converter-se em terreno fértil para o desamparo. Retira-se o gozo e não se oferece nada em troca — senão o ressentimento parental delegado à máquina.


Pondé, em A Era do Ressentimento, completa o quadro: “O bem virou mais um objeto de consumo.” A medida australiana, mais do que proteger, capitaliza o medo. É menos uma política de saúde mental e mais uma estratégia de capital político: performar proteção enquanto se fortalece o aparato de vigilância e controle sobre corpos juvenis.


Zygmunt Bauman, em Amor Líquido, apontava que vivemos em tempos de conexões frágeis e vínculos descartáveis. Ora, o gesto de banir adolescentes das redes sociais não rompe com essa lógica — ele a repete. Em vez de ensinar vínculo, desconecta. Em vez de educar para o limite, impõe o corte. Como se desplugando o jovem do mundo se resolvesse o que o mundo já não sabe conter: o colapso da escuta, o excesso de estímulo e a carência de elaboração simbólica.


No fundo, o que se tenta proibir não é o acesso ao TikTok, mas o próprio sintoma. E como bem sabemos — ao menos nós, os que ainda acreditam na psicanálise —, proibir o sintoma é acelerar o acting-out.


O sujeito contemporâneo — já suficientemente atravessado por algoritmos, diagnósticos precoces e dopamina de rolagem — não precisa de mais um botão de "bloqueio". Precisa de presença simbólica. Precisa de adultos que falem menos de “limites tecnológicos” e mais de “limites subjetivos”.


Mas isso dá trabalho. E nesse trabalho, nem sempre há curtidas.


Referências bibliográficas


BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.


GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Tradução de Luiz Sergio Coelho de Souza. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2002.


PONDÉ, Luiz Felipe. A era do ressentimento: uma agenda para o contemporâneo. São Paulo: LeYa, 2014.


FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: Obras completas, v. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.



Nota sobre o autor

José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador do projeto “Mais perto da ignorância”. Argumenta na angústia como liberdade.

#maispertodaignorancia


Canais de publicação

📺 YouTube: Mais Perto da Ignorância

🎙 Spotify: Mais Perto da Ignorância

📖 Blog: http://maispertodaignorancia.blogspot.com


Contatos

📧 E-mail: maispertodaignorancia@protonmail.com

📘 Facebook: fb.com/maispertodaignorancia

📷 Instagram: @maispertodaignorancia


Aprofunde-se aqui:

http://maispertodaignorancia.blogspot.com/2025/08/adolescentes-redes-e-o-novo-rito-de.html


Palavras-chave:

controle digital, adolescência e algoritmo, repressão simbólica, narcisismo infantil, vigilância emocional, política do medo, saúde mental performática, André Green, Bauman, Freud, rede social, política parental,


#maispertodaignorancia

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade Assista o vídeo em nosso canal no YouTube Introdução A cada dia me questiono mais sobre a relação entre a tecnologia e a construção da identidade. Se antes o trabalho era um elemento fundamental na compreensão da realidade, como Freud argumentava, hoje vejo que esse vínculo está se desfazendo diante da ascensão da inteligência artificial e das redes discursivas. A materialidade da experiência é gradualmente substituída por discursos digitais, onde a identidade do sujeito se molda a partir de impulsos momentâneos amplificados por algoritmos. Bauman (1991), ao analisar a modernidade e o Holocausto, mostrou como a racionalidade técnica foi usada para organizar processos de exclusão em grande escala. Hoje, percebo que essa exclusão não ocorre mais por burocracias formais, mas pela lógica de filtragem algorítmica, que seleciona quem merece existir dentro da esfera pública digita...

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

Eu, o algoritmo que me olha no espelho

  Eu, o algoritmo que me olha no espelho Um ensaio irônico sobre desejo, ansiedade e inteligência artificial na era do desempenho Escrevo este texto com a suspeita de que você, leitor, talvez seja um algoritmo. Não por paranoia tecnofóbica, mas por constatação existencial: hoje em dia, até a leitura se tornou um dado. Se você chegou até aqui, meus parabéns: já foi computado. Aliás, não é curioso que um dos gestos mais humanos que me restam — escrever — também seja um dos mais monitorados? Talvez eu esteja escrevendo para ser indexado. Talvez eu seja um sintoma, uma falha de sistema que insiste em se perguntar: quem sou eu, senão esse desejo algorítmico de ser relevante? Não, eu não estou em crise com a tecnologia. Isso seria romântico demais. Estou em crise comigo mesmo, com esse "eu" que performa diante de um espelho que não reflete mais imagem, mas sim dados, métricas, curtidas, engajamentos. A pergunta não é se a IA vai me substituir. A pergunta é: o que fiz com meu desejo...