O ruído como sintoma civilizatório: quando o silêncio é privatizado e o barulho se torna norma
Fonte:
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx276gp5j18o
Introdução
Vivemos cercados por uma poluição invisível, mas talvez mais corrosiva do que a fumaça das fábricas ou os anúncios luminosos das avenidas digitais: o ruído. Não falo apenas do barulho do trânsito ou do cachorro do vizinho, mas do tremor contínuo de sons menores, quase imperceptíveis, que, somados, constroem uma atmosfera insuportável.
A BBC Future trouxe à tona um fenômeno pouco discutido: a sensibilidade ao ruído — uma condição biológica, psíquica e social que atinge até 40% da população, mas que ainda não é reconhecida como diagnóstico formal. Na prática, significa viver em estado de hipervigilância acústica, onde o cérebro não consegue desligar os canais sonoros, transformando o ambiente em um campo minado de incômodos constantes.
Este artigo busca tensionar o tema sob três dimensões: biológica, psicológica e socioeconômica, articulando Freud, Bauman, Han e Green, de modo a mostrar que a sensibilidade ao ruído não é apenas uma idiossincrasia individual, mas um sintoma estrutural do mal-estar na civilização.
1. O ruído e a biologia do corpo saturado
Pesquisas citadas no artigo mostram que pessoas sensíveis ao ruído apresentam falhas no núcleo geniculado medial, responsável por filtrar estímulos auditivos irrelevantes. Enquanto o cérebro “normal” aprende a ignorar um carro distante ou uma torneira pingando, o cérebro sensível acelera em qualquer situação, como se tudo fosse ameaça.
O resultado é um corpo permanentemente em estado de alerta: batimentos cardíacos acelerados, pressão arterial elevada, distúrbios do sono. Trata-se de uma biologia sitiada pelo cotidiano, onde cada ruído mínimo equivale a um microchoque, uma descarga que impede a homeostase.
Aqui, André Green nos ajuda: a energia psíquica, que deveria ser investida em criação, pensamento e desejo, é sequestrada para a pura tarefa de resistir ao barulho. É uma economia psíquica negativa, em que o sujeito gasta-se em defesa e nada sobra para o prazer ou para o simbólico. O corpo vira uma caixa de ressonância saturada.
2. O psiquismo colonizado pelo barulho
Se a biologia sofre, o psiquismo é invadido. Freud já dizia que o mal-estar da civilização nasce da tensão entre o instinto e a vida coletiva. O ruído é um dos dispositivos contemporâneos desse mal-estar: ele não permite a elaboração interna.
O artigo cita estudos em que pessoas sensíveis não dormiam pior em termos objetivos, mas relatavam sono menos reparador. Aqui está a chave: o sofrimento não é apenas objetivo, mas subjetivo. O ruído mina a sensação de descanso, não apenas o descanso em si.
É uma colonização da interioridade: o sujeito, mesmo em silêncio, carrega dentro de si o barulho residual. Isso aproxima a sensibilidade ao ruído de outras condições ligadas à ansiedade, esquizofrenia e autismo, onde o problema não é o mundo “lá fora”, mas a impossibilidade de filtrar, metabolizar e esquecer.
Byung-Chul Han falaria em sociedade da transparência e sociedade do cansaço: não há pausa, não há sombra, não há silêncio. O ruído é a tradução acústica dessa saturação psíquica. Ele funciona como um algoritmo: sempre ativo, sempre notificando, sempre vibrando no fundo.
3. O ruído como dispositivo social
Não podemos reduzir a sensibilidade ao ruído à biologia ou à psicologia. O ruído é também um produto social. Nas cidades contemporâneas, tudo vibra, tudo acelera, tudo compete por atenção: carros, obras, publicidade sonora, vizinhos, música, aparelhos domésticos.
Zygmunt Bauman nos lembraria que a modernidade líquida dissolve fronteiras: o espaço privado já não é refúgio, pois os ruídos externos invadem as paredes e atravessam as portas. A promessa da casa como lugar de descanso é minada pelo fluxo contínuo da cidade.
Mais grave: o silêncio foi privatizado. Quem pode compra isolamento acústico, fones com cancelamento de ruído, retiros em áreas silenciosas. Quem não pode, aprende a normalizar a agressão sonora. O ruído, nesse sentido, é uma violência de classe: o direito ao silêncio é desigual.
4. A não-patologia que adoece
Curiosamente, a sensibilidade ao ruído não é um diagnóstico formal. Os manuais psiquiátricos não a reconhecem, mas ela corrói lentamente o corpo e a mente. Trata-se de uma não-patologia que adoece.
Essa recusa em nomear é sintomática: aquilo que não se encaixa nos códigos oficiais é descartado como frescura. É a lógica neoliberal aplicada à saúde: se você sofre, o problema é seu. Aprenda a suportar. Freud chamaria isso de recalque social; Han, de autoexploração: o sujeito transforma a dor em falha pessoal.
5. Saídas possíveis ou paliativos impossíveis?
O artigo lista soluções: urbanismo acústico, zonas de silêncio, redução da velocidade, paredes que difratam som. Também terapias individuais: TCC, musicoterapia, arteterapia, medicação. Mas há um limite evidente: o mundo não vai se calar.
O capitalismo exige movimento, e movimento faz barulho. As cidades são projetadas para circular, não para repousar. Nesse cenário, cada medida é um paliativo: um tampão no ouvido, uma música relaxante, uma parede de isolamento. Mas o ruído estrutural permanece.
Conclusão: o silêncio como direito negado
A sensibilidade ao ruído expõe um ponto cego da nossa era: o silêncio tornou-se privilégio, e o barulho virou norma. O que deveria ser direito coletivo — o descanso acústico — foi privatizado em forma de mercadorias (fones, terapias, tratamentos).
No fundo, o ruído é metáfora da modernidade tardia: sempre presente, aparentemente pequeno, mas devastador na soma. Não nos mata de uma vez, mas nos corrói gota a gota.
Freud falaria em mal-estar; Bauman, em liquidez; Han, em cansaço. Eu prefiro dizer: o ruído é o som da máquina social nos lembrando, sem cessar, que não há mais espaço para se calar.
Referências
ZIMMER, Katarina. Como a sensibilidade ao ruído perturba a mente, o cérebro e o corpo. BBC Future, 24 ago. 2025. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx276gp5j18o. Acesso em: 25 ago. 2025.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
GREEN, André. O discurso vivo: uma teoria psicanalítica da afasia. Rio de Janeiro: Imago, 1994.
Nota do Autor
Este texto faz parte do projeto Mais Perto da Ignorância, que investiga os sintomas silenciosos (ou barulhentos) da nossa era — aqueles que não cabem nos manuais, mas que destroem lentamente o sujeito. Não há autoajuda aqui, apenas a constatação: o silêncio virou mercadoria, e o ruído é a trilha sonora oficial da civilização.
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Palavras-chave
Ruído; Sensibilidade; Saúde mental; Sociedade do cansaço; Mal-estar; Modernidade líquida; Silêncio; Capitalismo; Neurociência; Psicanálise.
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