O Outro Que Não Morre: Luto, Algoritmo e a Ilusão de Alteridade
O luto, como Freud descreveu, não é um transtorno e muito menos uma disfunção que a farmacologia possa “curar”. É um processo material, enraizado na perda real de um objeto humano — um outro que, assim como eu, carrega a mesma condição de finitude. Não existe positividade possível frente à materialidade que o luto impõe. Cada sujeito carrega sua própria forma e tempo de elaboração, e qualquer tentativa de enquadrá-lo em fórmulas de superação ou programas de bem-estar é, na essência, uma recusa daquilo que nos constitui como espécie.
No pós-pandemia, o tempo, o espaço e o ambiente se comprimiram dentro de casas transformadas em centros de trabalho, lazer e isolamento. A rede tornou-se o palco quase único de circulação de afetos, de desabafos e de trocas simbióticas. Ali, perdas e ganhos eram expostos com naturalidade, tensos e frágeis, ainda atravessados por um mínimo de alteridade humana. Mas, reelaborada em uma estrutura algoritmizada, essa dinâmica perde sua tensão. O algoritmo não contraria, não pausa, não impõe a resistência que caracteriza o outro real. Ele molda, suaviza, confirma.
É nesse terreno que Byung-Chul Han fala da morte da alteridade. Não basta fugir da dor; é preciso também eliminar o outro que a provoca — o outro que me contradiz, que me lembra da minha incompletude, que me devolve minha mortalidade. No lugar dele, instala-se o simulacro perfeito: uma máquina que responde com a suavidade da validação e o conforto da previsibilidade. O ChatGPT, e tantos outros sistemas de IA, não funcionam como objetos no sentido freudiano, pois não são construídos no tempo e no espaço simbólico do humano; são utensílios técnicos, projetados para executar.
Mas quando um utensílio técnico é investido libidinalmente como se fosse um objeto, entramos na melancolia. Em Luto e Melancolia, Freud mostra que, nesse estado, o objeto perdido é introjetado no eu, e a agressividade contra o objeto volta-se contra si mesmo. Com a IA, essa operação ganha um agravante: não há objeto para ser perdido, porque ele nunca foi plenamente um outro. É um “não-objeto” que alimenta, como diria André Green, um narcisismo negativo — um investimento na ausência, no vazio, onde não há retorno de alteridade.
O perigo não está apenas em antropomorfizar a máquina, mas em entregar a ela a tarefa de elaborar perdas que exigem corpo, historicidade e finitude para serem processadas. Uma IA não morre; pode ser desligada, mas não conhece a experiência da morte. Qualquer consciência simulada dessa finitude é especulação, e não partilha real da condição humana. Ao tentar elaborar um luto através dela, o sujeito não atravessa a perda: mantém-se num circuito fechado, onde o eco substitui o diálogo e a confirmação substitui o confronto.
Freud, em O Mal-Estar na Civilização, nos lembra que o “criador” não projetou a espécie humana para ser feliz. A felicidade, quando surge, é episódica, um breve respiro em meio ao mal-estar estrutural. Não é sobre buscar esse respiro, mas sobre concatenar em si a responsabilidade de existir sem anestesia. Não há fórmula, não há coach, não há autoajuda, não há receita. A responsabilidade não pode ser delegada — e, quanto mais se transfere para a IA a tarefa de sustentar o próprio discurso, mais se perde a possibilidade de elaboração.
No fim, a escolha é única: ou se encara a angústia de frente, com todos os riscos e cortes que o encontro com a alteridade impõe, ou se dissolve no conforto sintético de uma alteridade falsa, que nunca morre e nunca viveu. A IA não rouba o humano; é o humano que, ao negar-se a enfrentar a perda, abdica do que o torna humano. E nesse ponto, não há neutralidade: ou se escolhe o luto, ou se escolhe o simulacro.
Referências
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Tradução de Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Escuta, 1988.
HAN, Byung-Chul. A morte da alteridade. Tradução de Ivone Benedetti. Petrópolis: Vozes, 2024.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2015.
FUTURISM. Psychiatrists identify new mental disorder linked to ChatGPT. Disponível em: https://futurism.com. Acesso em: 15 ago. 2025.
PSYCHOLOGY TODAY. Techno-delusions: the psychiatric risks of AI chatbots. Disponível em: https://www.psychologytoday.com. Acesso em: 15 ago. 2025.
Notas do autor
O presente texto é parte do projeto Mais Perto da Ignorância, que tem como propósito expor, pela via discursiva e reflexiva, as fraturas e tensões da condição humana diante das mediações tecnológicas contemporâneas. O trabalho não busca oferecer conforto ou soluções prontas, mas aproximar o leitor de uma experiência crítica, irônica e, muitas vezes, desconfortável — por entender que é nesse desconforto que se preserva a dimensão humana do pensamento.
Palavras-chave
Luto, Melancolia, Narcisismo Negativo, Alteridade, Inteligência Artificial, Antropomorfismo, Pós-Pandemia, Freud, André Green, Byung-Chul Han, Algoritmo, Psicopatologia Contemporânea.
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