O narcisismo do botão deletar
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Se tudo pode ser deletado com um clique, o que ainda merece ser vivido?
Vivemos um presente onde os laços são frágeis como senhas esquecidas. A promessa da Regulação Europeia da IA — tratada como avanço civilizatório — talvez seja apenas mais uma performance de controle travestida de ética. A União Europeia começa a aplicar as novas regras do AI Act com pompa de salvadores iluministas, mas o que se vende como “transparência” pode ser só mais um teatro moral diante do abismo técnico que ninguém mais compreende.
Não por acaso, a mesma UE que regulamenta a IA é cúmplice silenciosa de um capitalismo de vigilância que Shoshana Zuboff já havia denunciado: uma economia onde o dado é mais valioso que o desejo. Estamos diante de um paradoxo grotesco — fingimos que controlamos o algoritmo enquanto o algoritmo aprende a nos deletar melhor. A moral da governança digital é a mesma do mercado: evite culpa, otimize tudo, externalize a merda.
Zygmunt Bauman, ao descrever o amor líquido, já denunciava a lógica da desconexão programada: relações descartáveis, vínculos frouxos, compromissos em cache. O que vale para os afetos serve também para as instituições. A regulação é líquida: molda-se ao contorno das big techs, mas escorre pelas rachaduras da ética pública. A confiança é contratual, a segurança, probabilística, e a verdade? Gerada em tempo real por IA generativa.
André Green nomeia isso de “narcisismo de morte”: um investimento psíquico na autodestruição disfarçada de proteção. A fantasia regulatória atual é sintoma desse narcisismo: queremos controle, mas só o suficiente para acreditar que ainda há sujeito ali. E assim, deslocamos o medo da extinção subjetiva para um terror higienizado chamado “transparência algorítmica”.
Luiz Felipe Pondé, em sua "Era do Ressentimento", já havia nos avisado: as democracias tecnocráticas transformam o bem em fetiche e a ética em decoração institucional. É o ressentimento de não sermos deuses, travestido de compliance. Cultivamos com fervor a ilusão de que bots éticos nos salvarão de nós mesmos, enquanto terceirizamos a responsabilidade moral à curva de aprendizado de modelos estatísticos.
E Freud? Riria. Seu “Mal-estar na civilização” agora é assinado digitalmente, criptografado e entregue por drone. A pulsão de morte não desapareceu — apenas pivotou. Deixou de ser devoradora e tornou-se analítica: não mais um estouro destrutivo, mas um gráfico limpo de comportamento previsível. O superego? Substituído por notificações de política de privacidade.
As novas regras da IA, afinal, não são barreiras ao poder técnico, mas confessionários laicos onde fingimos que ética pode ser parametrizada. A UE quer nos convencer que colocar advertências nos algoritmos é o mesmo que compreendê-los. Mas, como Bauman insistia, modernidade é gestão do risco com glamour. A tragédia não é a ausência de regulação — é a crença de que ela basta.
No fim, a pergunta não é se a IA será ética. É se nós ainda somos.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Rio de Janeiro: Revinter, 1993.
PONDÉ, Luiz Felipe. A Era do Ressentimento: uma agenda para o contemporâneo. São Paulo: LeYa, 2014.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism. Nova York: PublicAffairs, 2019.
Nota sobre o autor:
José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador independente, autor do projeto “Mais perto da ignorância”, dedicado a analisar a cultura digital sob lentes psicanalíticas, niilistas e existencialistas. Criador do blog e pesquisador independente no blog “Mais Perto da Ignorância”.
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Palavras-chave:
IA ética, transparência algorítmica, Zuboff, Bauman, André Green, Freud, narcisismo digital, compliance performático, regulação da tecnologia, psicanálise da técnica, #maispertodaignorancia
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