🩸 O monstro quer mudar de nome — e nós?
Se a justiça esquece, quem lembrará? E se perdoamos, por que ainda trememos ao ver o rosto do esquecido?
I. O perdão como deletar: a era dos arquivos morais
Francisco de Assis Pereira quer mudar de nome. Como quem troca de CPF ou e-mail antigo. O “Maníaco do Parque”, que estuprou e matou mulheres em série no fim dos anos 1990, planeja sua “reinvenção” para 2028, quando poderá sair da prisão. Ele não deseja exatamente reabilitar-se — deseja, ao que tudo indica, desaparecer.
Não se trata de um caso isolado de revisão penal. É um sintoma. E como todo sintoma, carrega mais do que quer confessar.
No fundo, não é o criminoso que está mudando de nome. É o próprio pacto simbólico de memória que a sociedade atual parece querer editar, como se fosse um post com comentários desabilitados. A promessa de que “aquele Francisco não existe mais” se insere num imaginário contemporâneo moldado pela lógica da performance e da obsolescência. André Green nos ajuda a decifrar o gesto: não é um narcisismo de vida — que elabora e assume a castração —, mas um narcisismo de morte, que nega e recalca tudo o que fere a imagem idealizada do Eu (GREEN, 1988). Ao mudar de nome, o sujeito não deseja enfrentar o trauma que causou; deseja apenas deletar sua responsabilidade subjetiva como se deletasse um histórico de busca.
Essa operação simbólica de exclusão, no entanto, não se restringe ao “Maníaco”. Ela é o motor silencioso de uma sociedade que aprende a esquecer como forma de sobrevivência emocional.
E o mais assustador: ela funciona.
II. Perdão performático, dor protocolar
Zygmunt Bauman já havia alertado que as instituições modernas tendem a liquefazer vínculos antes sólidos — e entre esses vínculos, o da culpa compartilhada (BAUMAN, 2004). Em tempos de cancelamento rápido e reabilitação calculada, o perdão tornou-se moeda social: serve à mídia, ao sistema penal, às igrejas e ao marketing pessoal do próprio condenado. Mas o que esse “perdão” representa? Uma restituição subjetiva da falta ou uma anestesia consensual?
O caso de Francisco é exemplar: ao afirmar sua conversão religiosa e o desejo de mudança de identidade, ele mobiliza os códigos atuais de “redenção pop”. A culpa, nesse contexto, não é mais uma elaboração — é uma peça de teatro. Freud diria que, nesse tipo de discurso, o supereu não se dissolve; ele se torna um algoritmo moral: em vez de repressão, oferece notificações. Em vez de castração simbólica, preferências de perfil (FREUD, 1930).
A narrativa da conversão cumpre uma função técnica: suavizar o horror e permitir à sociedade reconfigurar o monstro como um “erro” passível de correção. Não há elaboração, apenas recodificação. Como afirma Byung-Chul Han, vivemos a era da “sociedade do desempenho”, onde até a dor precisa ser curada em tempo hábil, dentro do script aceito da superação (HAN, 2017).
Mas o horror — como o trauma — não se submete a scripts.
III. Justiça, espetáculo e algoritmos de empatia
De acordo com dados do CNJ (2023), o Brasil possui mais de 800 mil pessoas encarceradas, com um índice de reincidência que ultrapassa 40%. Ou seja: o sistema não reabilita, apenas recicla a punição. Nesse teatro disfuncional, casos como o de Francisco ganham visibilidade não porque representam justiça, mas porque alimentam uma dramaturgia coletiva — uma catarse perversa.
A mídia opera como o palco desse drama. As matérias que cobrem o “retorno” do maníaco não o fazem por interesse jurídico, mas porque sabem que há audiência. A cobertura mistura crime, religião, redenção e suspense — uma novela com personagens prontos para o consumo moral. É o que a filósofa Shoshana Zuboff chamou de “capitalismo de vigilância emocional” (ZUBOFF, 2020): vidas transformadas em dados, julgamentos em curtidas, e o sofrimento em cliques.
E o público? Assiste, comenta, compartilha — e esquece no dia seguinte. A emoção foi processada, a indignação performada, o horror monetizado.
Cioran diria que só podemos nos considerar humanos se nossa memória nos envergonhar. Mas quem, hoje, ainda sustenta o peso da vergonha sem desejar que ela vire engajamento?
IV. O nome da ferida
Mudar de nome não muda o passado. Mas altera o contrato simbólico que sustenta nossa relação com o real. Se Francisco deixar de ser Francisco, não será apenas ele quem muda — será a possibilidade mesma de sustentar a memória do trauma.
Não se trata aqui de defender a prisão perpétua ou o linchamento moral. Trata-se de algo mais incômodo: o direito de lembrar sem anestesiar. O direito de não ser obrigado a perdoar para ser considerado ético. Como lembra Bauman, a ética moderna é feita para dissolver conflitos, não para sustentá-los (BAUMAN, 1998). Mas talvez devêssemos reaprender a sustentar.
Nossos afetos tornaram-se temporários, nossas indignações rotativas. Mas a dor das vítimas não se programa para sair do trending topics. Ela não se converte. Ela não muda de nome.
A pergunta que ecoa, portanto, não é se Francisco merece ou não uma nova chance. A pergunta que fere é: por que nós, como sociedade, temos tanto desejo de esquecer?
E mais ainda: o que exatamente estamos querendo deletar?
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
BAUMAN, Zygmunt.
Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço.
Petrópolis: Vozes, 2017.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Relatório Justiça em Números 2023. Brasília, 2023.
Nota sobre o autor:
José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), pesquisador do projeto “Mais perto da ignorância”. Argumenta na angústia como liberdade.
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Palavras-chave:
Francisco de Assis Pereira, Maníaco do Parque, memória coletiva, narcisismo de morte, justiça simbólica, cultura do esquecimento, perdão performático, mídia e trauma, Bauman, Freud, Green, Cioran, psicanálise crítica, sociedade do espetácuos
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