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O membro fantasma entre Freud e a neurociência: memória, traço e inscrição cortical

O membro fantasma entre Freud e a neurociência: memória, traço e inscrição cortical


Fonte inicial:👇


(link jornalístico que motivou a discussão):
https://revistagalileu.globo.com/ciencia/noticia/2025/08/estudo-analisou-a-resposta-do-cerebro-de-amputados-antes-e-depois-da-amputacao.ghtml



Introdução

O fenômeno do membro fantasma é um dos paradoxos mais intrigantes do diálogo entre psicanálise e neurociência. Mesmo após amputações ou lesões medulares, os indivíduos continuam a sentir, mover ou sofrer com um membro que já não responde. Trata-se de uma memória corporal que insiste, mesmo diante da ausência física. Freud, muito antes da atual biônica e da neuroimagem, já havia sugerido que “só esquecemos daquilo que lembramos”, apontando para a impossibilidade de um esquecimento absoluto. Hoje, as pesquisas confirmam que o traço do corpo permanece inscrito no córtex, ecoando a formulação freudiana do inconsciente como um depósito de marcas indestrutíveis.


1. A inscrição cortical do membro ausente

Estudos recentes de neuroimagem (MAKIN et al., 2025) demonstram que o mapa cortical da mão permanece ativo mesmo anos após amputações. Em lesões medulares, quando há ruptura da via motora descendente, sinais corticais ainda podem ser detectados durante a imaginação do movimento (NICOLELIS, 2011). Isso indica que o cérebro conserva a representação motora como um engrama persistente, mesmo que a execução periférica seja impossível.


2. A psicanálise e o traço mnêmico

Para Freud (1895; 1914), o esquecimento nunca é total: aquilo que se “perde” na consciência reaparece sob outra forma. O inconsciente é a instância que preserva o traço mnêmico, ainda que deslocado ou recalcado. O membro fantasma é, nesse sentido, a figura exemplar do “retorno do recalcado”: um braço que não está mais lá, mas cuja lembrança insiste como dor, movimento virtual ou sensação fantasmática.


3. A diferença entre amputação e lesão medular

Na amputação, o corpo físico é perdido; na lesão medular, o corpo permanece, mas está desconectado. Em ambos os casos, o registro cortical se mantém. Essa diferença abre duas frentes distintas para a biomecânica: próteses neurais para amputados e reativação muscular via estimulação elétrica funcional ou estimulação epidural em lesados medulares.


4. O papel dos neurônios-espelho

Descobertos por Rizzolatti, os neurônios-espelho permitem que observar uma ação ative os mesmos circuitos de quem a executa. Em amputados e lesados, a observação de ações ou o uso de realidade virtual pode reativar mapas motores, facilitando a incorporação de próteses neurais. Trata-se de um mecanismo de aprendizagem vicária que dialoga com a própria noção freudiana de repetição: repetir, observar e imitar constituem formas de manter vivo o traço.


5. Entre o simbólico e o material

A questão que se coloca é se essas memórias são apenas simbólicas ou também materiais. A neurociência mostra que há uma sustentação fisiológica — sinapses, redes, padrões de conectividade —, enquanto a psicanálise ressalta a dimensão de significação que ultrapassa o dado biológico. O membro fantasma é, portanto, tanto traço material no córtex quanto inscrição simbólica no inconsciente.


Conclusão

O membro fantasma confirma, no nível do corpo, a tese freudiana de que não há esquecimento absoluto. O que se foi retorna como marca, insistindo sob forma de dor, sensação ou movimento. A biônica contemporânea transforma essa insistência em oportunidade: usar os registros preservados para criar próteses neurais, exoesqueletos e sistemas de retroalimentação sensorial. O que para a clínica era sintoma, para a tecnologia pode ser caminho de reconstrução funcional. Freud talvez reconhecesse aí a força de sua própria afirmação: não esquecemos o corpo; ele insiste em nós como memória, como fantasma e como possibilidade de reencarnação técnica.


Referências:

FREUD, Sigmund. Projeto para uma psicologia científica (1895). In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar (1914). In: FREUD, Sigmund. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

MAKIN, Tamar et al. Somatosensory maps remain stable following hand amputation. Nature Neuroscience, v. 28, p. 1-12, 2025.

NICOLELIS, Miguel. Muito além do nosso eu: a nova neurociência que une cérebros e máquinas — e como ela pode mudar nossas vidas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

RIZZOLATTI, Giacomo; SINIGAGLIA, Corrado. Espelhos do cérebro: como nos entendemos com os outros. Rio de Janeiro: Record, 2008.

RAMACHANDRAN, V. S. O que o cérebro tem a dizer. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Referência científica central:

SCHONE, Hunter R.; 

MAIMON-MOR, Roni O.;
 
KOLLAMKULAM, Mathew; 

SZYMANSKA, Malgorzata A.;

GERRAND, Craig;

WOOLLARD, Alexander; KANG, Norbert V.; BAKER, Chris I.; 

MAKIN, Tamar R. Stable cortical body maps before and after arm amputation. Nature Neuroscience, v. 28, 21 ago. 2025. DOI: 10.1038/s41593-025-02037-7. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41593-025-02037-7. Acesso em: 25 ago. 2025. 

> Observação: o paper é de acesso aberto e traz dados longitudinais (pré vs. pós-amputação) mostrando estabilidade dos mapas de mão e lábios, além de coorte comparativa de amputados crônicos.  


Notas do Autor (para fechar o artigo):

O conceito freudiano de traço mnêmico dialoga com a evidência de engramas motores preservados; não há “apagamento” pleno, mas mudança de via de expressão.

Em lesão medular, o membro permanece físico e a via está interrompida; isso amplia as possibilidades de interfaces cérebro-máquina e de feedback sensorial dirigido.

Neurônios-espelho oferecem um caminho pedagógico (observação → imaginação → execução assistida) para acoplar prótese e fortalecer o pertencimento corporal.

A dor fantasma não deve ser reduzida a “reorganização mal-adaptativa” apenas; os dados atuais apontam para estabilidade cortical e a necessidade de abordagens periféricas e de circuito fechado. 

Limites: amostra longitudinal pequena (n=3) e foco em membro superior; generalizações exigem parcimônia. 


Palavras-chave: membro fantasma; engrama; córtex somatossensorial; amputação; lesão medular; neurônios-espelho; inconsciente; Freud; próteses neurais; feedback sensorial; TMR; RPNI; estimulação epidural. 


#maispertodaignorancia





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