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O dia em que a distopia virou manual de instruções

O dia em que a distopia virou manual de instruções




Vivemos numa época em que as distopias não são mais advertências, mas tutoriais. 1984 deixou de ser a ficção paranoica de um inglês ressentido para tornar-se o roteiro operacional dos data centers, que hoje substituem o “Grande Irmão” pela lógica dos algoritmos de engajamento. O que antes era teletela é agora um feed infinito, calibrado para garantir que você não apenas veja o que deve ver, mas também esqueça o que não deve lembrar. Orwell imaginou um Estado que reescrevia a história; nós aperfeiçoamos o método — terceirizamos para máquinas que não precisam dormir, não têm remorso e conhecem nossas preferências mais íntimas, inclusive aquelas que nunca confessaríamos nem sob tortura.



Se Huxley estava certo ao dizer que não precisaríamos de coerção, mas apenas de prazer, então vivemos a era do soma ubíquo. Só que, em vez de comprimidos distribuídos pelo Ministério do Bem-Estar, temos um cardápio diversificado: ansiolíticos de tarja preta, séries que se autoproclamam “originais” (mas repetem fórmulas), e uma avalanche de conteúdo feito para ocupar cada microfresta de tédio, porque o ócio — esse momento de risco de pensamento — tornou-se intolerável. Freud, em O Mal-Estar na Civilização, identificou três fontes inevitáveis de sofrimento: o corpo que adoece, a natureza que ameaça, o outro que nos incomoda. Conseguimos a proeza de intensificar todas ao mesmo tempo, enquanto fingimos que não percebemos.


O narcisismo de morte, conceito de André Green, não é mais exceção clínica — é norma cultural. Trata-se da retirada de investimento da vida, não por depressão súbita, mas como projeto de longo prazo: um desinvestimento suave, confortável, que mantém o funcionamento básico enquanto o eu se isola num casulo estéril. É o modo avião da psique. Mantém-se a energia mínima para não colapsar, mas não se envia nem recebe nada que possa desestabilizar o sistema. Esse narcisismo negativo casa perfeitamente com o presente histórico: alienação produtiva, anestesia emocional e, de bônus, a sensação de que “estar informado” é equivalente a rolar o dedo na tela.


Nicolelis, em Nada mais será como antes, levou o delírio a um cenário climático e tecnológico em que até a luz do sol se torna inimiga. Não é tão distante do que já vivemos. A reportagem da BBC sobre os efeitos das ondas de calor no cérebro não é um exercício de ficção científica, mas um inventário de sintomas: convulsões, agravamento de epilepsias, AVCs, colapsos cognitivos. A temperatura não é apenas um dado meteorológico — é uma variável neurológica. Byung-Chul Han poderia chamar de “sociedade do cansaço” em ebulição, onde o esgotamento não vem apenas do excesso de produtividade, mas da simples tarefa de existir num planeta que ferve.


Bauman diria que tudo isso é líquido. Mas o calor, esse, é sólido: derrete as ilusões e endurece o concreto das desigualdades. Países pobres, menos preparados para suportar as ondas de calor, são os que mais sofrem com as doenças neurológicas associadas. Shoshana Zuboff completaria: enquanto o capitalismo de vigilância lucra com cada clique, o capitalismo climático lucra com cada colapso. A alienação ambiental e a alienação digital são duas faces da mesma lógica: transformar tudo — inclusive o sofrimento — em dado monetizável.


Não se trata mais de especular sobre o que aconteceria se as distopias se realizassem. O presente já é a intersecção das três: Orwell nos ensinou a esquecer, Huxley nos ensinou a anestesiar, Nicolelis nos mostrou o corpo derretendo sob o céu. E Freud, sempre ele, já havia dito que não há negociação possível com a natureza. Estamos apenas assistindo à materialização dessa frase, agora com gráficos, relatórios e hashtags.


Enquanto isso, a mediação discursiva — jornalística, política, acadêmica — funciona como o filtro solar do desastre: permite que a luz (ou a informação) passe em doses controladas, suficientes para aquecer, mas não para queimar. O problema é que, nesse processo, se perde a radiação que poderia provocar transformação. O discurso é pasteurizado, como se as notícias pudessem ser consumidas como cápsulas de vitamina D: inofensivas, recomendadas diariamente e, de preferência, sem efeitos colaterais.


O resultado é que a distopia deixou de ser ameaça e se tornou hábito. O que deveria ser um alerta literário virou uma convenção social. É como se lêssemos 1984 não para nos prevenir, mas para aprender boas práticas de gestão da memória coletiva. Consultamos Admirável Mundo Novo como se fosse manual de recursos humanos para o humor organizacional. E, se alguém questiona, respondemos com um meme, essa forma pós-moderna de transformar crítica em decoração de tela.


No fim, o “narcisismo de morte” é apenas a expressão psíquica de um sistema que prefere sujeitos funcionais a sujeitos conscientes. O sujeito funcional consome, reage a estímulos, mantém sua produtividade e evita perguntas incômodas. O sujeito consciente... bem, esse é perigoso. Pode lembrar, pode recusar a dose de soma, pode perceber que o sol não está apenas aquecendo, mas cozinhando lentamente o planeta e seus habitantes. E, numa sociedade que tem pavor do real, essa percepção é um risco sistêmico.



Referências:



BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.


BBC NEWS BRASIL. O mundo está ficando mais quente — e isso está afetando nossos cérebros. Londres: BBC Future, 11 ago. 2025. Disponível em: 


https://www.bbc.com/portuguese/articles/c5y055gyl48o. Acesso em: 14 ago. 2025.


FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1930.


GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Rio de Janeiro: Imago, 1988.


HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.


HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Londres: Chatto & Windus, 1932.


MARX, Karl. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013.


NICOLELIS, Miguel. Nada mais será como antes. São Paulo: Planeta, 2024.


ORWELL, George. 1984. Londres: Secker & Warburg, 1949.


ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.



Nota sobre o autor


José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), autor do projeto Mais Perto da Ignorância, que investiga criticamente as tensões entre tecnologia, cultura e psique na contemporaneidade.



Palavras-chave


distopia contemporânea, narcisismo de morte, alienação simbólica, Freud, Green, Orwell, Huxley, Nicolelis, capitalismo de vigilância, crise ambiental



Link original:

https://www.bbc.com/portuguese/articles/c5y055gyl48o



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