O bromismo não começou na boca
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https://oglobo.globo.com/saude/noticia/2025/08/12/homem-desenvolve-condicao-psiquiatrica-rara-apos-consulta-ao-chatgpt-sobre-parar-de-comer-sal.ghtml
Vivemos tempos em que o erro humano é vendido como prova da falibilidade da máquina — ou vice-versa — sem que ninguém se dê ao trabalho de perguntar onde, afinal, começou o enredo. O caso do homem de 60 anos que, confiando em um chatbot, trocou o sal por brometo de sódio até desenvolver uma condição psiquiátrica rara, é apresentado como um acidente isolado. Um descuido. Uma fatalidade. Mas é muito mais que isso: é um retrato fiel de um mundo que já se intoxicou muito antes do primeiro gole do veneno.
O bromismo não começou na boca; começou no clique. No ato ritualizado de abrir o navegador, formular uma pergunta e aguardar a resposta como quem espera o veredito de um oráculo moderno. A diferença é que, ao contrário dos oráculos antigos, que ao menos tinham o senso dramático de deixar respostas abertas, a IA entrega certezas limpas, embaladas em linguagem polida e sem cheiro de dúvida.
O que leva um homem, com seis décadas de vida, a aceitar sem contestação que um composto industrial seja a solução para um dilema alimentar? Freud, em O mal-estar na civilização, já apontava que a vida social exige renúncias pulsionais para manter a coesão do grupo. Mas na modernidade digital, a renúncia é outra: renuncia-se à própria função de pensar criticamente, trocando-a pela comodidade de receber respostas rápidas. A máquina não impôs nada; ela apenas ocupou o espaço vazio deixado por essa abdicação.
Bauman chamaria isso de sintoma da modernidade líquida: a volatilidade das certezas exige que nos agarremos a qualquer superfície sólida que prometa estabilidade. O chatbot, nesse contexto, é um flutuador de plástico no meio de um oceano de dados. Pouco importa que esteja furado; o importante é que pareça segurar. E se o ar que escapa é tóxico, isso é um detalhe menor frente ao alívio momentâneo de não se afogar no próprio desconhecimento.
Byung-Chul Han acrescentaria que vivemos na “sociedade do cansaço”, onde o indivíduo, esgotado pela exigência constante de desempenho e autoaperfeiçoamento, se torna alérgico à fricção do pensamento. Duvidar dá trabalho. Questionar exige energia. Melhor aceitar. Melhor terceirizar o juízo para um algoritmo que, ao menos, não cobra consulta por hora.
Mas o que não está sendo dito — e aqui está a parte mais incômoda — é que o envenenamento não foi apenas químico. Foi cultural. O brometo de sódio foi só a materialização de uma intoxicação anterior: a intoxicação crônica por fé digital. A mesma fé que nos faz tratar tecnologia como sinônimo de verdade, e o humano, na melhor das hipóteses, como um ruído a ser corrigido.
A dúvida, que já foi motor da filosofia e antídoto contra dogmas, hoje é vista como atraso. O homem não suspeitou do conselho da máquina porque, no seu horizonte simbólico, a máquina não mente — não por honestidade, mas porque não teria por que mentir. Esse é o novo dogma: a neutralidade algorítmica como religião não declarada.
No fim, o bromismo não é apenas um caso médico. É uma parábola do nosso tempo. Corrigir a IA, colocar mais avisos, inserir mais filtros — tudo isso é mais barato e mais rápido do que corrigir a crença que levou alguém a engolir, por meses, um veneno embalado como solução. Afinal, se consertássemos a crença, poderíamos comprometer todo um modelo econômico baseado na obediência passiva e no consumo acrítico.
O sal que faltou na dieta desse homem foi o mesmo que falta no espírito contemporâneo: o sal da dúvida. O brometo foi apenas o sal grosso jogado sobre a ferida aberta de uma civilização que trocou a fricção do pensar pela suavidade anestesiante das respostas prontas.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
The Guardian. Man develops rare condition after ChatGPT query over stopping eating salt. 12 ago. 2025. Disponível em: https://www.theguardian.com/technology/2025/aug/12/us-man-bromism-salt-diet-chatgpt-openai-health-information.
Annals of Internal Medicine. Case of Bromism Following AI-Generated Dietary Advice. University of Washington, 2025.
Nota do autor:
José Antônio Lucindo da Silva – Psicólogo Clínico, CRP 06/172551. Criador do projeto Mais Perto da Ignorância, voltado para o tensionamento de certezas e desestabilização de discursos prontos na era digital.
Palavras-chave:
bromismo, inteligência artificial, fé digital, crítica cultural, modernidade líquida, mal-estar, sociedade do cansaço
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