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Nação dopamina e seus silêncios: uma crítica psico-bio-social e tecnológica ao discurso reducionista do vício digital

Nação dopamina e seus silêncios: uma crítica psico-bio-social e tecnológica ao discurso reducionista do vício digital


Resumo

Este artigo propõe uma análise crítica da obra Nação Dopamina de Anna Lembke, frequentemente utilizada como referência explicativa para o vício nas redes sociais. O texto examina os limites do diagnóstico neuroquímico ao contrastá-lo com perspectivas de Freud, Marx, Byung-Chul Han, Cathy O’Neil, Jonathan Haidt, Jean Twenge e Christopher Lasch. A reflexão tensiona o discurso midiático que se apoia exclusivamente na dopamina como explicação do mal-estar contemporâneo, questionando de forma irônica — à maneira de Emil Cioran — se não estaríamos transformando uma molécula em desculpa universal. O artigo articula aspectos psico-bio-sociais e tecnológicos, ressaltando que o vício digital é inseparável de estruturas históricas, políticas e econômicas.





Anna Lembke inicia Nação Dopamina descrevendo que “a balança entre dor e prazer está sempre em busca de equilíbrio, mas na sociedade moderna a balança pende para o lado do prazer imediato” (LEMBKE, 2022, p. 41). Essa chave de leitura tem o mérito de simplificar a discussão para o grande público: somos biologicamente incapazes de resistir ao excesso. Contudo, ao reduzir o problema ao nível neuroquímico, a autora silencia dimensões históricas e sociais fundamentais.

Será que o influenciador que toma esse livro como guia leu também Freud? Em O mal-estar na civilização, Freud observa: “O que chamamos de felicidade, no sentido mais estrito, provém da satisfação — quase sempre instantânea — de necessidades represadas e, por natureza, só pode ser um fenômeno episódico” (FREUD, 2010, p. 28). Ora, o diagnóstico freudiano não é bioquímico, mas estrutural: o sofrimento deriva da tensão entre pulsões e as exigências da cultura. Reduzir o mal-estar contemporâneo à dopamina é, portanto, amputar a análise.

Marx é ainda mais direto: “O caráter fetichista da mercadoria provém do fato de que o caráter social do trabalho aparece aos homens como forma objetiva do próprio produto” (MARX, 2013, p. 94). Se as redes sociais são vício, não é apenas porque excitam nossos neurônios, mas porque transformam nossa atenção em mercadoria, escondendo a exploração sob a ilusão de “interação gratuita”. O discurso neuroquímico, ao ignorar isso, serve involuntariamente como álibi para o capital digital.

Byung-Chul Han amplia o diagnóstico ao afirmar que “as doenças do século XXI não são infecções, mas enfartos, provocados não pela negatividade, mas pelo excesso de positividade” (HAN, 2015, p. 11). O cansaço, a depressão e a ansiedade não são sintomas de dopamina fora de controle, mas da lógica social que exige desempenho constante. O discurso químico é cômodo porque não denuncia o regime neoliberal da autoexploração.

Jean Twenge, em iGen, traz dados contundentes: “Os adolescentes comuns checam seus celulares mais de oitenta vezes por dia” (TWENGE, 2018, p. 22). Jonathan Haidt reforça: “As taxas de depressão e automutilação em adolescentes, especialmente meninas, aumentaram abruptamente a partir de 2012, coincidindo com a popularização dos smartphones” (HAIDT, 2024, p. 113). A dopamina explica o impulso, mas não explica a cronologia histórica — o salto coincide com a lógica algorítmica de plataformas, não com uma mutação cerebral.

Cathy O’Neil denuncia em Algoritmos de Destruição em Massa: “Os modelos matemáticos tendem a punir os pobres e proteger os ricos. É uma injustiça camuflada pela matemática” (O’NEIL, 2020, p. 38). Traduzindo: não são apenas nossos neurônios que são manipulados, mas nossas condições sociais, atravessadas por sistemas opacos que reforçam desigualdades. O vício digital não é um acidente biológico, mas uma engrenagem política.

Christopher Lasch já havia advertido, em A cultura do narcisismo, que “a sociedade moderna encoraja a exibição do eu como espetáculo” (LASCH, 1983, p. 47). A dopamina fornece o prazer químico, mas o verdadeiro motor é a necessidade de reconhecimento em uma cultura narcisista, onde “ser visto” é sinônimo de existir.

Assim, quando discursos midiáticos elevam Nação Dopamina a paradigma total, transformam a crítica em autoajuda. Como ironizaria Cioran, “nada mais humano que buscar explicações curtas para dores intermináveis”. A dopamina serve como essa muleta discursiva: explica sem perturbar, alivia sem questionar, acomoda sem transformar.

A pergunta retórica permanece: será que o influenciador leu as demais obras? Ou será que, como todos nós, preferiu o diagnóstico mais fácil? No fim, culpar a dopamina é como culpar o estômago pela fome mundial — uma meia-verdade, cômoda demais para ser crítica.


Referências:

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.

HAIDT, Jonathan. A geração ansiosa. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2024.

LEMBKE, Anna. Nação dopamina. São Paulo: [Editora], 2022.

LASCH, Christopher. A cultura do narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1983.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013.

O’NEIL, Cathy. Algoritmos de destruição em massa. Santo André: Rua do Sabão, 2020.

TWENGE, Jean. iGen. São Paulo: nVersos, 2018.

ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.


Notas do autor

Este artigo não critica pessoas, mas discursos. O problema não é que influenciadores popularesizem reflexões, mas que, ao escolherem apenas um referencial neuroquímico, acabem reproduzindo a lógica que dizem denunciar: a superficialidade. Entre dopamina e história, escolhemos a crítica.


Palavras-chave

dopamina; vício digital; Freud; Marx; Byung-Chul Han; Cathy O’Neil; Jonathan Haidt; Jean Twenge; narcisismo; redes sociais; capitalismo de vigilância


Fonte original

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