Mente Alugada: A Voz Interior como Produto Neuro-econômico
#maispartodaignorancia
A neurociência invade nossa intimidade com a gravidade de quem sabe que, em breve, nossas “vozes interiores” poderão ser ouvidas como anúncios invasivos. O recente estudo do projeto BrainGate2 — sintetizando pensamentos em palavras “ouvíveis” — não restaura a humanidade: mercantiliza nossa consciência. Publicado em 14 de agosto de 2025, no prestigiado Cell, o trabalho de Kunz, Willett e colaboradores mostrou que máquinas conseguem decodificar aquilo que imaginamos dizer, com até 74 % de exatidão, ativando uma zona cinzenta entre o dentro e o fora, entre o subjetivo e o comercial .
Isso nos lembra Bauman: a modernidade líquida transforma tudo — até o gesto mental mais íntimo — em dado, em mensagem a ser capturada, monetizada, transacionada. Aqui, a voz interior é reduzida a um ativo neuroeconômico, sujeito a licitação por algoritmos e chips. Não há esperança redentora, só mais uma capitalização da subjetividade.
É um avanço genuíno para quem perdeu a fala — e isso não é pouco. A tecnologia dá àqueles silenciados pelo corpo a chance de conversar com o mundo. Mas, como advertiria André Green, a barreira entre expressão e exposto é tênue, e esses dispositivos nos tornam à mercê de narrativas extracorporais, literalmente: o que for mais conveniente, a “voz interior décodiffável”, poderá ser exportada no feed, no relatório, no meme.
Da perspectiva freudiana: onde antes havia pulsão e pensamento inarticulado, agora há um sistema que traduz, que norma. A voz interior, território de conflito, desejo, resistência psíquica, pode cair em domínio da interface, virando ruído estatístico ou conteúdo gerenciado.
Zuboff, no capitalismo de vigilância, veria aí um triunfo: não é mais nosso comportamento online que interessa, mas nossos pensamentos. O “password interior” — “Chitty Chitty Bang Bang” — que ativa ou bloqueia a decodificação, soa como um produto freudianamente trivial, passe sacrossanto para impedir que o capital mental se espalhe. Mas será suficiente? Afinal, o sistema já “ouviu” pensamentos que não foram formulados com intenção de falar .
E o presente histórico não é benigno. Estamos em meados de 2025: era da expansão da inteligência artificial, do e-commerce mental, da externalização da cognição. A materialidade se impõe: implantes intracorticais, micro-eletrodos no córtex motor. Sem alarde, sem utopia, estamos diante de hardware e software que operam na camada mais íntima do ser humano.
Cioran nos lembraria: “Nada nos salva de nós mesmos”. Agora, nem os pensamentos nos pertencem mais. A neurotecnologia nos pressiona, nos sujeita à eficiência, ao controle, à produtividade do cérebro. A voz interior torna-se recurso com prazo de validade — se for suficientemente clara e útil para o algoritmo.
Marx denunciaria: com que força a subjetividade se transforma em commodity! O “pensamento livre” vira bit legível. A ética se reduz ao plugin que “bloqueia inner speech até ativado pela senha”.
Becker, Dalgalarrondo, advogariam por limites. Mas somos jovens adultos (25–45), saturados de ironia, conscientes da tensão: tecnologias que salvam vidas também adoecem a liberdade. As plataformas (Instagram, Facebook, LinkedIn) que usamos para “marcar presença”, agora podem ser abastecidas por pensamentos codificados — engajamento direto com a mente?
A ironia final é cruel: estamos mais perto da ignorância, porque nossa intimidade cognitiva já está pensando algoritmicamente. É um domínio sem redentor: o avanço não liberta, ele justifica. O projeto Mais Perto da Ignorância não enxerga esperança, apenas o espelhamento – do corpo vivo ao sistema pós-humano.
2. Referências:
KUNZ, Erin M. et al. Inner speech in motor cortex and implications for speech neuroprostheses. Cell, v. Published 14 Aug. 2025.
GOLDMAN, Bruce. Study of promising speech-enabling interface offers hope for restoring communication. Stanford Medicine News Center, 15 ago. 2025.
NEWS RELEASE. Brain-computer interface could decode inner speech in real time. EurekAlert!, 14 ago. 2025.
3. Nota sobre o autor
Autor anônimo, membro do coletivo crítico "Mais Perto da Ignorância". Filosófico e textual, cultiva em ironia a única resistência possível à colonização neoliberal da mente.
4. Palavras-chave
neurotecnologia, voz interior, capitalismo mental, interfaces cérebro-computador, ética, vigilância cognitiva, subjetividade, crítica marxista, presente histórico
5. Link original
https://www.infomoney.com.br/business/global/para-alguns-pacientes-a-voz-interior-podera-ser-ouvida-em-breve/
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