Máquinas de aprender, corpos de adoecer: por que o ensino algorítmico nos esgota?
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A promessa contemporânea de aprendizado mediado por máquinas, chatbots e inteligências artificiais baseadas em algoritmos generativos é apresentada como revolução pedagógica, emancipação cognitiva e democratização do saber. Discursos midiáticos alardeiam a figura de um “Sócrates digital”, pronto a interpelar com perguntas, simular diálogos e conduzir estudantes à autonomia crítica. Mas, ao contrário da aura emancipatória que circula em propagandas e reportagens, o aprendizado algorítmico revela uma face paradoxal: ele gera desgaste físico, psíquico, biológico, material, estrutural e social.
Essa afirmação não parte de mera impressão. Ela se sustenta na análise de fenômenos psico-bio-sociais contemporâneos que, combinados com o avanço tecnológico e a lógica neoliberal, produziram uma mutação no modo como o sujeito aprende, elabora e se relaciona com a experiência. O discurso midiático celebra a velocidade, a performance e a disponibilidade total do saber; mas o que permanece oculto é o custo humano dessa adaptação forçada a uma temporalidade que não coincide com a temporalidade da vida.
1. O mal-estar da aprendizagem maquínica
Freud, em O mal-estar na civilização (1930/1996), mostrou que a renúncia pulsional é o preço da vida em sociedade. Hoje, essa renúncia assume nova forma: renunciamos ao tempo de espera, ao silêncio e à possibilidade de elaborar o desejo em prol de uma resposta imediata, fornecida por sistemas inteligentes. O espaço do tempo de latência, fundamental na constituição do sujeito, é abolido pela lógica da instantaneidade. Winnicott, ao propor a importância da “capacidade de estar só”, alertava para a necessidade de suportar a espera e o vazio criativo como elementos estruturantes do amadurecimento. A aprendizagem mediada por IA, ao contrário, reforça a lógica de que não se deve suportar o vazio: é preciso clicar, atualizar, preencher imediatamente a ausência.
Do ponto de vista psíquico, o aprendizado com máquinas desloca o sujeito da posição de elaborador para a de consumidor. O estudante já não é sujeito da pergunta, mas cliente de uma demanda algorítmica. Byung-Chul Han, em Sociedade do cansaço (2015), descreve esse processo como resultado de uma economia de desempenho: o sujeito se autoexplora, busca respostas rápidas, mede produtividade pelo número de tarefas concluídas, mas termina exaurido. O que se chama “autonomia” é, na verdade, autoexploração invisível.
2. A dimensão biológica: cérebros de milhões de anos diante de softwares acelerados
Do ponto de vista neurobiológico, o cérebro humano foi moldado por milhões de anos de evolução, orientado pela necessidade de sobrevivência em ambientes concretos, regulado por ciclos de sono, vigília, repouso e esforço. O aprendizado consolidava-se no espaço da experiência corporal, dos rituais sociais e da memória inscrita na repetição temporal.
Hoje, ao tentar rodar programas acelerados — sejam aplicativos educacionais, sejam interfaces de IA — esse “hardware ancestral” enfrenta sobrecarga. Estudos em neurociência cognitiva demonstram que a hiperexposição a telas reduz a atenção sustentada, fragmenta a memória de trabalho e compromete os circuitos dopaminérgicos responsáveis pelo reforço motivacional. Jonathan Haidt, em A geração ansiosa (2024), mostra que adolescentes e jovens expostos a mais de 5 horas diárias de redes sociais apresentam risco duas vezes maior de depressão e ansiedade. No Brasil, onde o consumo de internet ultrapassa 9 horas diárias e o uso de redes sociais chega a quase 4 horas/dia, o corpo é lançado a uma hiperexcitação contínua, sem pausas para consolidação mnésica e psíquica.
Esse ambiente não só afeta crianças e adolescentes. Adultos, sob efeito de marketing e da economia da atenção, reproduzem comportamentos tipicamente adolescentes: busca incessante por validação, ansiedade de curtidas, dificuldade de suportar o silêncio e o vazio. A biologia humana, habituada a ritmos cíclicos, não suporta a linearidade infinita da timeline. Daí emergem sintomas: insônia, fadiga crônica, estresse oxidativo, ansiedade generalizada.
3. A lógica social e material do desempenho
Bauman (2001) definiu a modernidade líquida como dissolução de vínculos estáveis em favor de relações fluidas, frágeis e descartáveis. Essa liquidez se transfere à educação. Aprender já não é atravessar um processo lento de sedimentação simbólica; é consumir fragmentos rápidos de informação que podem ser abandonados tão logo um novo algoritmo sugira outro caminho.
O social sofre: a escola perde seu valor de espaço coletivo de experiência, substituída por plataformas privadas que prometem personalização. A promessa de acesso universal oculta a desigualdade material: milhões de brasileiros permanecem excluídos da conectividade ou entram nela apenas pela via precária dos pacotes de dados móveis. O aprendizado maquínico, nesse sentido, reforça exclusões: quem pode pagar pelo acesso constante à IA ganha vantagens, quem não pode permanece à margem.
Do ponto de vista material, as empresas de tecnologia — como aponta Shoshana Zuboff em A era do capitalismo de vigilância (2019) — exploram os dados dos usuários. A aprendizagem se torna, paradoxalmente, fonte de lucro: cada pergunta feita a um chatbot não é apenas exercício cognitivo, mas também dado extraído, perfil traçado, informação convertida em valor mercantil. O “socrático digital” não ensina apenas; ele vigia, extrai, cataloga.
4. A dimensão estrutural: adultização material e infantilização simbólica
Nos dados oficiais do IBGE, o Brasil ainda apresenta taxas alarmantes de evasão escolar na adolescência: 19,9% aos 17 anos, número que denuncia a incapacidade do sistema de manter os jovens na escola. A contradição é evidente: simbolicamente, infantilizamos os jovens (“cidadãos do futuro”); materialmente, adultizamos, impondo-lhes trabalho precoce, gravidez, abandono escolar.
Nesse quadro, a IA educacional aparece como solução mágica. Mas ela não responde à materialidade estrutural: falta de políticas públicas, escolas sucateadas, professores mal remunerados. A promessa de aprendizado com máquinas apenas encobre a negligência estatal, oferecendo um verniz tecnológico que não enfrenta os determinantes sociais da educação.
5. O efeito psíquico: da angústia sinal ao esgotamento silencioso
A angústia, em Freud, pode ser elaborada como sinal — alerta que convoca o sujeito a simbolizar. Mas o excesso de estímulos, descrito pela psicanálise contemporânea como característica das “patologias do desvalimento” (Green, 1985), produz uma angústia automática, corporal, sem mediação simbólica. Em vez de pensar, o sujeito sente. Em vez de elaborar, descarrega.
A aprendizagem mediada por máquinas reforça esse ciclo. O estudante não suporta esperar; precisa responder, clicar, atualizar. O espaço do intervalo é abolido. Byung-Chul Han fala no “aroma do tempo”: perder a capacidade de demora é perder a possibilidade de reflexão. O aprendizado sem demora não é aprendizado: é consumo de instruções.
6. O desgaste social: da promessa midiática ao vazio existencial
As narrativas midiáticas, quando apresentam chatbots como guias pedagógicos, ocultam os custos sociais e existenciais. O desgaste não é apenas físico (insônia, fadiga ocular, dores cervicais) ou psíquico (ansiedade, depressão). É social: aprendemos a perguntar como em vez de por quê.
O “como” — como passar na prova, como resolver a questão, como aplicar um conceito — é instrumental. O “por quê” é existencial, teleológico, histórico. Ao suprimir o “por quê”, a aprendizagem maquínica transforma a experiência humana em checklists de sobrevivência digital. Marx já denunciava que a alienação do trabalho se dava quando o sujeito produzia sem reconhecer-se na obra. Hoje, alienamo-nos quando aprendemos sem reconhecer-nos no conhecimento.
7. Considerações finais
O aprendizado com máquinas gera desgaste físico, psíquico, biológico, material, estrutural e social porque:
1. Elimina a espera necessária à elaboração psíquica e simbólica.
2. Sobrecarrega o corpo com demandas incompatíveis com a neurobiologia humana.
3. Alienariza socialmente, transformando aprendizado em dado e vigilância.
4. Oculta desigualdades materiais, prometendo personalização enquanto reforça exclusões.
5. Infantiliza simbolicamente e adultiza materialmente os sujeitos, criando uma geração ansiosa, cansada e sem horizonte.
Não se trata de rejeitar a tecnologia. Mas de compreender que sem tempo, sem corpo, sem espaço de elaboração, não há aprendizado: há apenas consumo. A máquina promete ensinar; mas, no limite, apenas nos ensina a esquecer o que é humano.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FREUD, Sigmund. Psicologia das Massas e Análise do Eu. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
GREEN, André. O Discurso Vivo. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
HAN, Byung-Chul. A Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
HAN, Byung-Chul. O Aroma do Tempo. Petrópolis: Vozes, 2016.
HAIDT, Jonathan. A Geração Ansiosa. São Paulo: Intrínseca, 2024.
LASCH, Christopher. A Cultura do Narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1983.
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.
O’NEIL, Cathy. Algoritmos de Destruição em Massa. São Paulo: Rua do Sabão, 2020.
ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019.
Links utilizados
https://www.ecommerceupdate.org/en/noticias/brasileiros-passam-9-horas-por-dia-nas-redes-sociais-diz-pesquisa-2
https://electroiq.com/stats/average-time-spent-on-social-media/
https://veja.abril.com.br/saude/excesso-de-redes-sociais-esta-associado-a-45-dos-casos-de-ansiedade-em-jovens
https://www.repositoriodigital.univag.com.br/index.php/Psico/article/view/1965/1878
https://pt.wikipedia.org/wiki/Uso_de_m%C3%ADdia_digital_e_sa%C3%BAde_mental
https://prc.springeropen.com/articles/10.1186/s41155-024-00323-0
https://www.researchgate.net/publication/360909421_Excessive_use_of_social_media_by_high_school_students_in_southern_Brazil
Notas do Autor
Este artigo não pretende demonizar a tecnologia, mas revelar os custos ocultos de seu uso no campo educacional. O desgaste que descrevemos é fruto de uma temporalidade incompatível entre máquinas e corpos. O desafio acadêmico e político é recuperar o espaço da espera, do silêncio e da reflexão — elementos indispensáveis ao humano.
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