Inteligência artificial, infância artificial: o QI que interessa ao mercado
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A curva do QI como índice de domesticabilidade cognitiva
Uma manchete que afirma que "videogames aumentam o QI de crianças" parece, à primeira vista, um pequeno alívio no abismo de angústia que cerca o pânico moral das telas. Mas, como todo discurso científico que adquire popularidade nas redes sociais, ele precisa ser interrogado não só pelo que diz, mas principalmente pelo que não diz. Ao propor que o QI aumenta com o videogame, a matéria publicada pelo site
O Antagonista, baseada em um estudo da Karolinska Institutet com mais de 9 mil crianças nos EUA, revela mais sobre o estado da ciência contemporânea e sobre o modelo de infância que estamos fabricando do que sobre o potencial cognitivo real dos jogos digitais.
Diz o estudo:
crianças que jogam mais videogame aumentam, em média, 2,5 pontos de QI em dois anos. O que parece positivo, na verdade, é a conversão da infância em um campo de testes para métricas de produtividade mental. A inteligência, antes entendida em sua complexidade — afetiva, relacional, ética — passa a ser quantificada por instrumentos cada vez mais voltados à otimização de desempenho.
O QI, enquanto índice, já não mede inteligência no sentido amplo, mas sim a capacidade de adaptação a tarefas repetitivas, fragmentadas e altamente moldadas por parâmetros tecnológicos. Em outras palavras: mede a capacidade de ser útil em um sistema que exige agilidade para processar dados, mas nenhuma profundidade para lidar com contradições.
Segundo Byung-Chul Han, vivemos uma transição da sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho. O videogame não é mais um momento de fuga ou lazer, mas um novo campo de autovigilância onde a criança é treinada desde cedo para ser produtiva no mesmo ambiente digital que a julgará no futuro. Jogar, então, não é brincar — é treinar para responder rápido, otimizar recursos, ganhar, vencer, comparar, subir de ranking. E mais: ser recompensado por isso.
A lógica do “gamification”, tão difundida no mundo corporativo e educacional, ganha aqui seu laboratório infantil — e, ironicamente, é lida como desenvolvimento cognitivo.
Mas o que significa “aumentar o QI” nesse contexto? A pesquisa não se aprofunda nos efeitos subjetivos, afetivos ou mesmo psicossociais dessa exposição prolongada aos jogos eletrônicos.
E mais: ignora os efeitos de longo prazo da lógica algorítmica sobre a formação do eu. A criança não apenas joga; ela é jogada por um conjunto de estruturas que a ensina que atenção vale pontos, que velocidade supera reflexão e que o tempo ocioso é tempo perdido.
Como alertou Freud, o processo civilizatório exige repressão, mas a era digital deslocou a repressão tradicional para um novo tipo de coerção: a da performance constante.
A infância como projeto de capital
O estudo da Karolinska Institutet se baseia em dados de crianças dos EUA, país onde a infância já é há décadas um campo de disputa entre o mercado e a educação. Desde cedo, crianças são treinadas para competir, comparar e consumir.
Quando um estudo sugere que os jogos digitais aumentam o QI, ele é rapidamente apropriado por narrativas que celebram a tecnologia como emancipadora, ocultando os interesses econômicos por trás da gamificação da infância. Videogames, afinal, são produtos. E as crianças, consumidores precoces, cada vez mais analíticos, mas cada vez menos simbólicos.
O filósofo Zygmunt Bauman diria que estamos liquefazendo a infância: ela já não é um período de formação lenta e densa, mas uma fase transitória, ansiosa e hiperconectada. Em vez de brincar com o mundo, a criança é levada a simular experiências em telas que imitam a realidade em alta definição, mas sem densidade simbólica. A subjetividade, neste cenário, é colonizada por estímulos fragmentários, efeitos rápidos, gratificações imediatas. E o QI, enquanto métrica, apenas normaliza esse processo. Não é a inteligência que está crescendo, é a adaptabilidade ao novo regime de sentidos.
O QI que o algoritmo quer
A lógica do QI reforça uma forma de pensar a inteligência como capital — um ativo a ser gerido, expandido, mensurado. Essa é a tese de Shoshana Zuboff sobre o capitalismo de vigilância: o comportamento humano, mesmo o infantil, é minuciosamente rastreado, transformado em dado e, finalmente, vendido como preditor de futuro. A criança que joga muito e apresenta aumento de QI é, portanto, uma promessa de consumo mais eficiente, mais acelerado, mais integrado à máquina.
Se Freud nos ensinou que o sujeito é estruturado pela falta, o algoritmo ensina que a criança ideal é aquela que preenche lacunas cognitivas com rapidez e sem angústia. Jogar torna-se um ato de treino para suportar a ausência de silêncio, a ausência de tédio, a ausência de pausa.
E o QI, convertido em símbolo de sucesso precoce, anestesia os sintomas do mal-estar infantil, que já não encontra tempo para se manifestar.
Como alerta Cioran, a velocidade com que o mundo se move impede que qualquer profundidade se forme. A criança que “melhora o QI” jogando videogame é, talvez, aquela que perde o lastro da lentidão — condição essencial para a elaboração psíquica. Em vez disso, desenvolve um pensamento acelerado, incapaz de metabolizar as frustrações, de habitar o vazio, de elaborar perdas. Ou seja: ganha pontos em testes, mas perde a habilidade de pensar o impensável.
O paradoxo da cognição útil
Dizer que videogames aumentam o QI é como dizer que os ratos de Skinner aprenderam mais porque apertavam a alavanca mais rápido. Trata-se de um reforço condicionado, e não de desenvolvimento simbólico. Os testes de QI, ao privilegiar tarefas de lógica, memória operacional e atenção dividida, não medem inteligência no sentido freudiano do termo — aquele que se associa à capacidade de sonhar, sublimar, desejar. Medem, no máximo, a eficiência do aparelho cognitivo em responder à lógica do sistema.
E qual é a lógica do sistema? Competição, produtividade, desempenho, monitoramento. Ao colocar as crianças dentro desse circuito, os videogames não “aumentam o QI” — apenas os treinam para o mundo que exige essa forma específica de resposta. O problema não está nos jogos em si, mas na forma como a ciência e o jornalismo os instrumentalizam para reafirmar valores de um tempo em que a infância é apenas um estágio acelerado da adultização mercadológica.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Obras completas, volume XXI.
São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
CIORAN, Emil. Silogismos da amargura. Lisboa: Vega, 2004.
Nota do autor
José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), escritor e criador do projeto Mais Perto da Ignorância. Atua na intersecção entre crítica social, psicanálise e filosofia contemporânea. Escreve para não confortar — mas tensionar.
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Palavras-chave
videogame, infância, QI, capitalismo de vigilância, subjetividade, gamificação, sociedade do desempenho, psicologia crítica, neurociência, educação, Byung-Chul Han, Freud, Bauman, tecnologia, psicanálise, mercado infantil, mais perto da ignorância
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