Infância em curto-circuito: quando a educação vira dopamina sob demanda
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Ted Chiang não fala como tecnófobo, mas como alguém que percebeu o que se perdeu no brilho do “atalho cognitivo”: a dificuldade. Em seu alerta, a IA generativa não é só uma ferramenta, mas a encarnação de uma ilusão — a de que o aprendizado pode ser reduzido a estímulo rápido, barato e indolor.
A crítica de Chiang soa incômoda porque toca na ferida de um tempo que confunde dopamina com conhecimento. A Dra. Anna Lembke já descreveu em Nação Dopamina que vivemos em uma economia límbica, onde tudo é calibrado para estimular prazer imediato. Se o smartphone é a seringa digital que fornece microdoses constantes de estímulo, a IA generativa é a droga premium: oferece respostas prontas, elimina a fricção e suprime a experiência fundamental de errar, corrigir e elaborar.
Byung-Chul Han, em A crise da narração, mostra que narrar é compartilhar experiência, e não apenas dados. Quando a infância é capturada por algoritmos que geram textos e respostas instantâneas, perde-se o tempo do silêncio, da elaboração, do intervalo necessário para que o saber se inscreva como experiência — aquilo que Walter Benjamin já chamava de “transmissão de sentido” e não de “informação crua”. O que resta é uma torrente de conteúdo indistinto, incapaz de se sedimentar como memória coletiva.
Cathy O’Neil, em Algoritmos de destruição em massa, advertiu que os sistemas automatizados não apenas erram: eles institucionalizam os erros, transformando-os em ciclos de retroalimentação que punem justamente os mais vulneráveis. Transposto para a educação: crianças de classes populares serão expostas a IAs de baixa supervisão, substitutas de professores precarizados, enquanto elites usarão a tecnologia como suplemento sofisticado. O resultado: mais desigualdade travestida de inovação.
Freud, em O mal-estar na civilização, lembrava que todo avanço técnico intensifica também novas formas de angústia. Ao prometer aprendizado sem esforço, a IA mina a própria base da cultura, que é a renúncia pulsional — a capacidade de adiar o prazer em nome de algo mais duradouro. Crianças treinadas a terceirizar sua dificuldade para a máquina aprenderão, cedo demais, a recusar a realidade do esforço.
O dado empírico reforça o ponto: estudos recentes da Nature Human Behaviour (Twenge et al., 2023) mostram correlação entre tempo de tela precoce e déficit de atenção sustentada. A Science Advances (Przybylski, 2022) aponta que a leitura profunda está em declínio acentuado entre jovens que consomem conteúdos mediados por algoritmos de personalização. A UNESCO (2023) foi taxativa: a digitalização sem regulação ameaça a qualidade da aprendizagem e amplia desigualdades globais.
Do ponto de vista psíquico, André Green lembrava que a cultura só se sustenta se houver narcisismo de vida — o investimento em algo além da gratificação imediata. A IA, ao oferecer atalhos permanentes, favorece o narcisismo de morte: a recusa de esforço, a corrosão do desejo.
E aqui, o diagnóstico se conecta ao de Anna Lembke: o prazer excessivo degenera em sofrimento. A balança dopaminérgica exige contrapeso. Crianças dopadas por respostas fáceis entram no mesmo ciclo que adictos descritos em Nação Dopamina: consumo compulsivo, perda de resiliência e intolerância à frustração.
Cioran, com sua ironia ácida em Nos cumes do desespero, dizia que a lucidez pode ser mais insuportável que a ignorância. A lucidez que se pede agora é reconhecer que a IA não salvará a educação: ao contrário, pode transformá-la numa máquina de distrações baratas. O risco não é só pedagógico, mas civilizatório.
Shoshana Zuboff, em A Era do Capitalismo de Vigilância, já mostrou que cada clique, cada consulta e cada “atalho de aprendizado” é matéria-prima para predição comportamental. Se crianças aprendem desde cedo a buscar respostas na máquina, não se trata apenas de preguiça cognitiva, mas de condicionamento. A educação passa a ser não um processo de emancipação, mas de captura de dados.
Ernest Becker, em A negação da morte, lembrava que toda cultura é uma resposta ao terror da finitude. Talvez a corrida por IAs educacionais não seja outra coisa senão uma tentativa de negar a vulnerabilidade do aprendizado humano: sua lentidão, seus erros, sua mortalidade. Mas ao negar isso, sacrificamos a formação da subjetividade crítica em nome de uma eficiência que só interessa ao mercado.
Evidência histórica ajuda a contextualizar: desde Darwin, em A origem das espécies, sabemos que adaptação exige tempo e pressão seletiva. Eliminar o atrito é eliminar também o mecanismo que produz evolução. A IA pode acelerar o acesso à informação, mas sem esforço cognitivo não há seleção, apenas sobrevivência artificial.
Consequências práticas para o presente:
1. Educação como simulacro: crianças podem crescer acreditando que pensar é apenas consultar.
2. Desigualdade radicalizada: elites com IA como suplemento, massas com IA como substituto.
3. Fragilidade psíquica coletiva: gerações incapazes de suportar a angústia da espera, da dúvida, do não saber.
4. Colonização da infância: dados de crianças se tornam mais valiosos que sua formação, perpetuando a lógica do capitalismo de vigilância.
A ironia maior é que a própria promessa de “educação personalizada” corre o risco de matar aquilo que a educação deveria preservar: a experiência comum, a narrativa compartilhada, a dificuldade que nos torna humanos.
Chiang tem razão: aprender é difícil. É justamente isso que o torna valioso. Uma infância terceirizada ao algoritmo não será mais inteligente: será apenas mais adestrada.
REFERÊNCIAS:
BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
BECKER, E. A negação da morte. Rio de Janeiro: Record, 1974.
BYUNG-CHUL HAN. A crise da narração. Belo Horizonte: Âyiné, 2020.
CIORAN, E. Nos cumes do desespero. São Paulo: Hedra, 2012.
FREUD, S. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
GREEN, A. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. Rio de Janeiro: Imago, 1988.
LEMBKE, A. Nação dopamina. São Paulo: Vestígio, 2022.
MARX, K. O capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
O’NEIL, C. Algoritmos de destruição em massa. São Paulo: Rua do Sabão, 2020.
UNESCO. Technology in Education: A Tool on Whose Terms? Relatório Global, 2023.
TWENGE, J. et al. “Digital Media and Adolescent Mental Health.” Nature Human Behaviour, v.7, 2023.
PRZYBYLSKI, A. “Screen Time and Learning Outcomes in Children.” Science Advances, v.8, 2022.
ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.
NOTA DO AUTOR (MPI)
José Antônio Lucindo da Silva — psicólogo clínico (CRP 06/172551), criador do projeto Mais Perto da Ignorância. Blog, podcast e canal independente que tensiona filosofia, psicanálise e crítica social sem oferecer alívio. O objetivo não é inspirar, mas desestabilizar certezas em tempos saturados de dopamina barata.
PALAVRAS-CHAVE
IA generativa, infância digital, dopamina, narcisismo de morte, capitalismo de vigilância, algoritmos de destruição, educação crítica, Ted Chiang, maispertodaignorancia
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