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Homens calados engolem crianças: o silêncio viril que esconde a violência

Homens calados engolem crianças: o silêncio viril que esconde a violência


Vivemos num tempo em que “ser homem” ainda significa, para boa parte da sociedade, suprimir emoções, reforçar dominação e ostentar invulnerabilidade — mesmo quando o custo insuportável é o silêncio cúmplice diante da violência. Diante disso, o propósito deste ensaio crítico, com acidez e sem qualquer esperança redentora, é submeter à análise crua a frase lapidar que originou esta reflexão: “Estigmas de masculinidade contribuem para invisibilidade de casos que envolvem crianças” (Folha de S. Paulo, Post nas redes, sem data, mas antes da publicação do influencer) — que, aqui, é revisitado como prisma de um sistema simbólico que anula vítimas.

Vejamos: estigmas de masculinidade — o termo soa pomposo, mas significa, em termos práticos, que se espera dos homens que não mostrem ferida, fraqueza, fragilidade. Esse estereótipo — bem descrito pela noção de hegemonic masculinity — impõe um modelo de virilidade inatingível, cultura transmitida desde a infância por pais, escolas, mídia — e reverberada em discursos sobre ser “forte, autossuficiente, dominador” .

Dado esse arcabouço simbólico, quando um menino sofre abuso, e ainda é menino — aquele ser socialmente condicionado a não chorar, não denunciar, não reclamar — torna-se quase literariamente invisível. Ele não fala; nem a sociedade reconhece que ele não deveria calar-se. Um cruel pacto social: “cala, menino, pois chorar é feminino”. Lá se vai o encontro de um sujeito consigo mesmo, eclipsado pela masculinidade estigmatizada.

Estudos sobre abusos sexuais masculinos confirmam o que a cultura nega com vigor: homens são vítimas, e silenciam. Corbett (2016) elabora a expressão “invisible men” para descrever sobreviventes masculinos de abuso — silenciados por vergonha, por estereótipos, e por profissionais menos propensos a reconhecer sinais em meninos, pois reagem ao comportamento externo com agressividade, não com dor interior .

Não bastasse isso, um estudo brasileiro de 2023 mostra que normas de gênero hegemônicas — patriarcais, adultocêntricas, raciais e de classe — atravessam os corpos desde a gestação, tornando invisível o gênero e a violência sexual contra crianças e adolescentes; justamente porque reproduzem relações assimétricas de poder que silenciam vítimas .

No plano global, o padrão se confirma: meninos não identificam suas experiências como abuso, usando gentilezas e eufemismos como “touching” ao invés de “sexual assault”, o que inflaciona artificialmente as estatísticas por invisibilizar o real sentido do fato .

Um olhar institucional — como o painel britânico citado pelo Observer — revela que o estigma (especialmente no âmbito sexual) torna as crianças menos propensas a ter seus casos relatados ou protegidos, e os profissionais treinados de forma insuficiente — cultivando “uma cultura de medo e silêncio” .

Esses dados, por si só, deveriam nos balançar. Mas nos acomodamos à narrativa confortável de que “isso não acontece conosco”, ou “homem que é homem não sofre e não denuncia”. A realidade é trágica: abuso sexual infantil (CSA) é mais comum do que supomos, e o silêncio dos meninos torna-a duplamente invisível.

Sem esperança, sem redentismo, apenas crua análise: precisamos desconstruir a masculinidade hegemônica que se orgulha de ser estoica e insensível. Porque enquanto for vergonhosa a dor masculina, estigmatizada como fraqueza, haverá crianças — meninos — calados, escondidos, e sem proteção.

Essa invisibilidade é desenhada por homens e mulheres que reproduzem discursos viris com a força de uma febre cultural: “não fragilize o homem”. Dessa forma, calamos os que mais precisam ser ouvidos.

Nesse silêncio, cabe a reflexão amarga: a masculinidade tóxica não mata apenas pelo abuso, mata pelo não reconhecimento — da dor, do grito, da criança.

Adotando a ironia irônica desse estilo, a masculinidade se torna verbo intransitivo: “não se queixa”, “não chora”, “não sente”. E assim, muitos meninos são invisíveis.

Esse texto não endereça soluções — pista de crueldade analítica: não há discurso redentor. O que nos resta é ver a estrutura, reconhecer o buraco, e deixar o espanto ferver no peito.


3. Referências:

CORBETT, Alan. Psychotherapy with Male Survivors of Sexual Abuse: The Invisible Men. London: Karnac, 2016.  

DE MARCHI, Geizi da Silva Sales; ALVES, Paola Biasoli; RIBEIRO, Rosangela Kátia Sanches Mazzorana. “Gênero e violência sexual contra crianças: um debate sobre relações de poder”. Interação em Psicologia, Curitiba, v. 27, n. 02, 2023.  

Observer. “Ignore the stigma and tackle the toxic cycle of child sexual abuse”. The Guardian (Observer view), 30 nov. 2024.  

Wikipedia. “Hegemonic masculinity”. Atualizado há 2 semanas.  

Wikipedia. “Toxic masculinity”. Atualizado há 4 dias.  

Canadian CRC. “The Invisible Boy: Revisioning the Victimization of Male...”.  



4. Nota sobre o autor

O autor deste texto é um analista crítico imerso nas formas mais soterradas da masculinidade, adepto do desconforto analítico e da ironia reflexiva, sem pretensão redentora — um “mais perto da ignorância” por princípio.


5. Palavras-chave

masculinidade tóxica, invisibilidade infantil, abuso sexual masculino, hegemonia de gênero, resistência sem esperança, silêncio viril


6. Link original no final

https://mla.bs/89c33046 (link citado na mensagem inicial)


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