Entre o Like e o Lixo: a infância terceirizada à economia da atenção
O Brasil nunca precisou de uma revolução tecnológica para esquecer da sua infância — bastou um smartphone e um pacote de dados parcelado em 12 vezes. É curioso como, em pleno 2025, conseguimos manter duas narrativas aparentemente opostas correndo lado a lado: de um lado, influenciadores como Felca, que com humor e sarcasmo denunciam a adultização de crianças nas redes; de outro, intelectuais e pesquisadores que, como Lenina Vernucci da USP, analisam o mesmo fenômeno sob a lente da desigualdade e da exploração digital. Ambos certos. Ambos incompletos. Porque, no fundo, o problema não está só no TikTok ou na “moda” das lives de NPC: está naquilo que antecede essas telas, no que Freud chamaria de recalque civilizacional, atualizado em streaming e monetização.
A CPI sobre adultização infantil no Senado — uma rara frente ampla, segundo matéria da CartaCapital (https://www.cartacapital.com.br/politica/cpi-sobre-a-adultizacao-reune-rara-frente-ampla-no-senado-federal/) — discute a lógica perversa em que crianças viram produtoras de conteúdo, muitas vezes para complementar a renda familiar ou sustentar a vaidade dos pais. Mas, diferente da narrativa pasteurizada de “perigo digital” que a imprensa adora vender, o problema é mais profundo: é estrutural. Antes da internet, o Brasil já tinha um histórico de trabalho infantil, mascarado sob a forma de “ajuda” doméstica ou comercial. Agora, trocamos o roçado pelo ring light. Mudou o cenário, manteve-se a lógica: infância como mão de obra barata.
O discurso de Felca, ao ironizar a espetacularização e a desigualdade, toca numa ferida, mas evita a necrose: não se trata apenas de “proteger” crianças de certos conteúdos, mas de compreender que a economia da atenção, descrita por Shoshana Zuboff (A Era do Capitalismo de Vigilância), é um sistema que não tolera a pausa, a frustração ou o tédio. Jonathan Haidt (A Geração Ansiosa) e Jean Twenge (iGen) já alertaram: adolescentes hiperconectados apresentam índices recordes de ansiedade e depressão. Mas, como toda importação teórica, esses dados precisam passar pelo filtro da realidade brasileira — onde o analfabetismo funcional atinge cerca de 27% da população (dados do Inaf, 2022) e o analfabetismo digital impede que milhões compreendam plenamente o que consomem e produzem online.
O problema se agrava quando cruzamos esses índices com o recorte socioeconômico: a PNAD TIC 2023 aponta que, embora 84% dos domicílios brasileiros tenham acesso à internet, a qualidade dessa conexão e a capacidade crítica de uso são radicalmente diferentes entre as classes. Nas regiões mais pobres, crianças acessam a rede principalmente via celular pré-pago, em aplicativos de uso fácil e rápido consumo, onde a lógica algorítmica — descrita por Cathy O’Neil em Algoritmos de Destruição em Massa — molda desejos, comportamentos e até a autoimagem. Não há neutralidade no código. Cada gesto digital é um dado, e cada dado é uma mercadoria.
Enquanto isso, a expressão “#EscolaLixo” viraliza (https://www.agazeta.com.br/educares/escolixo-termo-ganha-forca-nas-redes-sociais-e-acende-sinais-de-alerta-0825), ecoando a desconfiança crescente sobre a educação formal. Não é coincidência que esse discurso floresça no mesmo terreno em que as redes oferecem uma “formação” instantânea baseada em memes, cortes de podcast e tutoriais de sucesso. Bauman já dizia que vivemos em tempos líquidos — mas no Brasil, essa liquidez escorre direto para o ralo da superficialidade, porque não houve antes o investimento sólido em infraestrutura e formação crítica. Aqui, o desmonte da escola pública e o sucateamento das políticas culturais funcionam como combustível para que a promessa de “aprender na internet” pareça plausível.
O cenário, portanto, não é de choque entre gerações, mas de convergência de precariedades: famílias exaustas, crianças adultizadas e algoritmos famintos. O que se chama de “drama social” nas redes é, na verdade, a tradução estética de um colapso mais antigo, que Byung-Chul Han descreve como o esgotamento de si: a criança-produtor de conteúdo não é só explorada — ela já internalizou que vale pelo engajamento que gera. E quando o engajamento falha, falha também sua autoimagem.
Não é surpresa, então, que instituições como a Sociedade Brasileira de Pediatria alertem para o não uso de telas por crianças menores de 2 anos e limitação severa até os 6 anos. Seus relatórios apontam riscos neurológicos, atrasos na linguagem, prejuízos na socialização e dificuldades emocionais. Mas esses alertas chegam a quem? Nas classes médias altas, onde há capital cultural para transformar “recomendações” em prática cotidiana. Nas periferias, a tela é babá, escola, playground e, cada vez mais, fonte de renda.
Se quisermos realmente enfrentar a adultização digital, não basta legislar sobre o conteúdo — é preciso mexer no tripé que sustenta o problema: desigualdade econômica, precarização educacional e captura algorítmica da atenção. E, talvez o mais difícil, aceitar que as soluções não virão embaladas em vídeos de 30 segundos ou na indignação seletiva da semana. Como diria Cioran, “a esperança é uma virtude de escravos”. Talvez seja hora de trocá-la por lucidez.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.
BYUNG-CHUL HAN. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
CIORAN, Emil. Breviário da decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
HAIDT, Jonathan. A geração ansiosa. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2024.
O’NEIL, Cathy. Algoritmos de destruição em massa. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
TRENGE, Jean M. iGen. New York: Atria Books, 2017.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
INAF. Indicador de Analfabetismo Funcional 2022. Disponível em: https://acaoeducativa.org.br/publicacoes/inaf-2022/.
PNAD TIC 2023.
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: Tecnologia da Informação e Comunicação. IBGE, 2024.
SOCIEDADE BRASILEIRA DE PEDIATRIA.
Manual de Orientação: Saúde de Crianças e Adolescentes na Era Digital.
Disponível em: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/23485c-MOrient-Saude-Crian-e-Adolesc.pdf.
Nota do autor
José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), criador do projeto Mais Perto da Ignorância, que investiga criticamente os discursos e práticas na era digital, articulando psicologia, filosofia e crítica cultural.
Palavras-chave
adultização digital, analfabetismo funcional, analfabetismo digital, economia da atenção, redes sociais, infância, desigualdade estrutural, educação, vigilância algorítmica
Links originais
Felca e adultização:
https://jornal.usp.br/artigos/caiu-na-rede-criancas-e-jovens-na-era-digital/
CPI no Senado:
Escola Lixo:
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