Entre a chupeta e o colapso: quando o eu se dissolve em dados
O que antes era um gesto infantil hoje se tornou performatividade de influenciador: adultos postando selfies com chupetas na boca. Parece só mais uma excentricidade algorítmica, mas esse gesto é sintoma de uma forma mais profunda de regressão psíquica: não à infância real, mas à simulação digital de um eu que nunca precisou se construir. Um eu que se autorreconhece apenas por aquilo que consegue registrar, postar, filtrar, medir e repetir. Um eu que deixou de ser corpo para virar input.
Neste ensaio, à luz da psicanálise freudiana e dos atravessamentos contemporâneos de autores como Zuboff, Roudinesco, Twenge e Han, exploramos as dimensões psíquicas, sociais e materiais desse novo modo de existir. O projeto Mais Perto da Ignorância não propõe saídas, mas perfurações. E não há ironia maior do que a de uma sociedade onde a regressão infantil se torna marca de estilo e algoritmo de engajamento.
O eu que não quer crescer: iGen e a extensão da dependência simbólica
Jean Twenge (2019), em iGen, não apresenta apenas estatísticas de adolescentes ansiosos e adultos inseguros. Ela documenta a suspensão da transição para a vida adulta: jovens que não saem de casa, não dirigem, não iniciam relações ou se demoram a trabalhar. O que está em jogo é o desaparecimento do real como palco de amadurecimento psíquico.
Em vez disso, surge uma geração condicionada a responder ao prazer imediato, à confirmação algorítmica e à validação simbólica. Não se trata de um retorno ao narcisismo primário — como diria Freud (2011) —, mas de uma reedição artificial do falso self, como propôs Winnicott (1990): um eu fabricado para responder ao olhar do outro, domesticado pela imagem que ele mesmo emite.
Chupetas simbólicas: o algoritmo como substituto da maternação
O gesto de chupar uma chupeta na idade adulta poderia parecer apenas excentricidade ou meme, mas no campo simbólico ele opera como aquilo que Freud (2011) definiu como objeto de fixação oral: uma forma de lidar com a falta por meio da repetição simbólica de uma satisfação passada.
Hoje, no entanto, não é apenas o objeto oral que se repete, mas a própria lógica da repetição que se instala como modo de vida. A chupeta está para o adulto digital assim como o scroll infinito está para o sujeito conectado: um substituto da ausência de sentido pela satisfação constante, sem tempo de metabolização. Isso é pulsão de morte em sua forma midiatizada, como já havia indicado Freud.
Zuboff e o eu-preditivo: entre a vigília e o desaparecimento
Shoshana Zuboff (2020), em A Era do Capitalismo de Vigilância, expõe o mecanismo de poder que estrutura esse novo eu digital: um sujeito que se expressa, mas não se constitui; que produz dados, mas não elabora sentido.
O algoritmo não apenas mede o comportamento, ele antecipa desejos, dirige escolhas e neutraliza a frustração. A subjetividade, reduzida a dado, é absorvida por um sistema que oferece satisfação antes mesmo que o desejo se forme. Não se trata de prazer, mas de predição. E não há amadurecimento possível naquilo que não atravessa a dor, o limite e a perda.
Roudinesco e a performatividade do eu ferido
Roudinesco (2021) observa um fenômeno correlato: o "eu soberano", que exige reconhecimento através de marcas identitárias performadas. A identidade, aqui, deixa de ser experiência em movimento para se tornar branding existencial. Cada dor vira bandeira, cada sofrimento vira métrica.
No entanto, essa soberania do eu é tão ilusória quanto violenta. A tentativa de solidificar o eu através da repetição do mesmo só aprofunda a dependência simbólica. Não se trata de subjetivação, mas de mercantilização do sofrimento.
Materialidade ou morte simbólica
Como lembrou Freud, a maturidade psíquica se dá através da capacidade de amar e trabalhar. Mas como trabalhar num mundo onde todo gesto é capturado por métricas? Como amar onde não há espera, nem falta, nem carne?
Twenge mostra que a geração iGen é composta por jovens superprotegidos e emocionalmente colapsados. Zuboff mostra que cada interação é moeda. Roudinesco mostra que a identidade virou performance. E você, caro leitor, está nesse emaranhado tentando ser alguém enquanto é apenas um reflexo de um dado.
O fim do eu: da subjetivação ao espelhamento total
Byung-Chul Han (2012) advertia: a transparência não é liberdade, é coerência compulsiva. Tudo deve ser dito, mostrado, validado. Nada pode ser opaco. É o fim do inconsciente, da densidade, da espera. Tudo vira presente instantâneo, despido de história, pulsando em busca de likes.
Esse novo eu, dissolvido e transparente, não deseja viver. Ele deseja aparecer. E para isso, se adapta, se reduz, se torna caricatura de si mesmo. A chupeta, aqui, é só a ponta do iceberg de um colapso de funções: da linguagem, da dor, do amadurecimento.
Referências:
FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. Obras Completas, v. XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
HAN, Byung-Chul. A sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2012.
ROUDINESCO, Elisabeth. O Eu Soberano: ensaios sobre as derivas identitárias. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
TWENGE, Jean M. iGen: por que os jovens superconectados estão crescendo menos rebeldes, mais tolerantes, menos felizes — e completamente despreparados para a vida adulta. São Paulo: nVersos, 2019.
ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
WINNICOTT, Donald W. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed, 1990.
Nota sobre o autor:
Este ensaio foi desenvolvido no escopo do projeto Mais Perto da Ignorância, que busca desestabilizar certezas confortáveis e tensionar discursos anestesiados pela cultura digital. O autor não propõe soluções, mas elaboradas fraturas simbólicas no sujeito contemporâneo.
Palavras-chave:
regressão psíquica, chupeta digital, falso self, capitalismo de vigilância, subjetividade, iGen, algoritmo, performatividade, pulsão de morte, narcisismo simbólico, transparência, redes sociais
Link original: http://maispertodaignorancia.blogspot.com
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