Entre a carne e o código: corpo, dado e a falsa soberania do sujeito
Fonte original: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cnv716g5v4yo
1. Introdução — O paradoxo inicial
O algoritmo sabe o que você vai comer amanhã — mas ainda não pode mastigar por você. Essa ironia resume a tensão do nosso tempo: vivemos mergulhados em ecossistemas digitais que nos tratam como bases de dados preditivos, mas continuamos existindo como organismos que respiram, sentem fome, adoecem e morrem. O discurso hegemônico sobre “o poder das máquinas” nos seduz pela narrativa de que a tecnologia opera num plano acima das nossas limitações biológicas. Mas aqui está o ponto: culpabilizar apenas o algoritmo é um álibi confortável. A máquina não tem fome, nem sede, nem ambição; quem a programa, quem lucra com ela, sim.
Shoshana Zuboff, em A Era do Capitalismo de Vigilância, descreve como o dado se tornou a nova matéria-prima de um mercado que se alimenta da vida cotidiana. Mas há um erro comum nesse diagnóstico popular: achar que o problema é a existência do algoritmo. O problema é a estrutura econômica que o constrói, alimenta e mantém. Quando apontamos o dedo apenas para a tecnologia, deixamos intactos os interesses humanos que a dirigem.
2. O algoritmo como álibi — Zuboff
Zuboff chama de “excedente comportamental” o material bruto que entregamos diariamente: cliques, buscas, geolocalização, padrões de consumo. Tudo isso é processado para prever e moldar o comportamento futuro — e, mais importante, para ser vendido como mercadoria.
O algoritmo é, portanto, apenas o meio; o fim continua sendo a maximização do lucro. A narrativa que atribui ao código uma espécie de “culpa moral” serve para nos alienar da realidade política e econômica. A mesma alienação que Marx identificava no trabalho fabril reaparece aqui: o produto do nosso viver digital é apropriado por outro, monetizado por outro, e retorna para nós como serviço ou “comodidade” — geralmente embrulhado em personalização e eficiência.
Mas a diferença crucial é que no século XIX sabíamos que trabalhávamos. Hoje, essa produção de valor é disfarçada como lazer, entretenimento, comunicação. A fábrica virou rede social; o operário virou usuário; o turno virou scroll infinito.
3. A economia política do dado — Marx
Marx descreveu a mais-valia como a diferença entre o valor produzido pelo trabalhador e o que ele recebe em troca. No capitalismo de vigilância, produzimos algo ainda mais precioso para o mercado: padrões comportamentais que permitem antecipar o consumo e até induzir desejos.
Essa nova mais-valia não é paga porque não é reconhecida como trabalho. Passamos horas “livres” conectados, mas, do ponto de vista econômico, estamos em plena jornada produtiva. Nossa subjetividade se torna mercadoria, e nossa atenção, moeda de troca.
Se, no capitalismo industrial, o corpo era explorado na sua força física, no capitalismo de dados, a exploração é dupla: da mente e do corpo. A primeira fornece matéria para a mineração de informação; o segundo, embora esquecido no discurso, continua sendo o suporte que torna possível todo o resto.
4. O corpo ausente — Freud
Freud, no Mal-estar na civilização, descreve como a vida coletiva exige renúncias pulsionais. Vivemos sob a repressão necessária para sustentar um tecido social minimamente estável. No mundo digital, essa repressão assume outra forma: o corpo físico é relegado ao segundo plano, substituído por uma versão higienizada, editada e monetizável — o “eu digital”.
Essa dissociação não elimina as necessidades básicas; apenas as reprime e desloca. Fome, sono, descanso, afeto e contato físico perdem prioridade frente à urgência de manter a presença nas plataformas. O corpo só reaparece quando falha — na forma de doenças, crises de ansiedade, burnout, distúrbios alimentares.
No plano pulsional, o algoritmo captura tanto Eros (nas conexões, curtidas, compartilhamentos) quanto Thanatos (no ódio, na indignação, nas polêmicas). Ambas as forças são exploradas como combustível de engajamento.
5. A transparência como disciplina — Han
Byung-Chul Han, em A Sociedade da Transparência, argumenta que o controle contemporâneo não se dá mais apenas pela vigilância externa, mas pelo desejo voluntário de exposição. Não somos apenas vigiados; somos cúmplices entusiastas dessa vigilância.
Se no modelo foucaultiano o poder punia e disciplinava, hoje ele seduz e recompensa. A disciplina não vem mais da proibição, mas do estímulo: “mostre mais”, “compartilhe mais”, “seja mais visível”. A transparência se tornou um ideal, e não uma imposição.
O efeito é um regime de autocensura e autoexposição simultâneas. Ao mesmo tempo em que escolhemos o que mostrar, internalizamos parâmetros que moldam esse mostrar de acordo com a lógica mercadológica.
6. A alienação orgânica
Chamemos de alienação orgânica a tendência de negligenciar as necessidades corporais em função da manutenção da persona digital. É quando atrasamos refeições para postar, respondemos mensagens no banheiro, estendemos jornadas de trabalho até a exaustão porque “a oportunidade é agora”.
Essa alienação não é apenas psicológica; é física. O corpo torna-se ruído no sistema — algo que precisa ser administrado para não atrapalhar a produtividade digital. É o inverso da economia agrária e industrial, onde o corpo era central. Aqui, ele é um incômodo inevitável.
7. O retorno da materialidade
Mas o corpo retorna. Sempre retorna. Pandemias, crises energéticas, desastres naturais lembram que a vida é biológica antes de ser digital. A COVID-19 expôs a fragilidade da infraestrutura global e mostrou que, sem corpos saudáveis, não há produção, consumo ou rede social que se sustente.
O mais irônico é que, nesses momentos, recorremos a tecnologias justamente para lembrar daquilo que já sabíamos: precisamos de comida, abrigo, cuidado. A tela registra a precariedade, mas não a resolve.
8. Conclusão aberta
Talvez a resistência, hoje, seja cultivar dimensões da vida que não possam ser transformadas em dados: fome saciada fora de aplicativos, conversas sem registro, toques sem foto. Não se trata de negar a tecnologia, mas de recusar a conversão total da vida em informação.
E a pergunta que fica, incômoda e urgente: quem é você quando a bateria acaba?
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. O Mal-estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Porto Alegre: L&PM, 2010.
HAN, Byung-Chul. A Sociedade da Transparência. Petrópolis: Vozes, 2017.
HAN, Byung-Chul. A Expulsão do Outro. Petrópolis: Vozes, 2018.
MARX, Karl. O Capital. São Paulo: Boitempo, 2017.
ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
Nota sobre o autor
José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551) e autor do projeto “Mais Perto da Ignorância”, dedicado à análise crítica da cultura digital, explorando as tensões entre subjetividade, tecnologia e materialidade.
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https://www.bbc.com/portuguese/articles/cnv716g5v4yo
Palavras-chave: algoritmo, corpo, materialidade, vigilância, alienação, dados, capitalismo digital, fome, resistência, Zuboff
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