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Do título comprado à angústia vendida: genealogia da falta como mercadoria

Do título comprado à angústia vendida: genealogia da falta como mercadoria


O que a burguesia fez com os títulos de nobreza, o capitalismo contemporâneo faz com a subjetividade. Eis a linha histórica que raramente aparece nas análises rápidas sobre “mercantilização da filosofia”: o que se negocia não é apenas cultura, mas a própria falta.

Na origem, a burguesia não tinha sangue azul, mas tinha dinheiro. Como não podia inventar linhagem, comprava títulos. Era o modo de transformar ausência em valor social, de converter déficit em legitimidade. Esse gesto fundante não morreu; ele se atualiza. Hoje, não compramos baronatos, mas compramos identidades: cursos de “propósito de vida”, diagnósticos que nos nomeiam, certificados digitais de sabedoria. O mecanismo é idêntico: a falta é transformada em mercadoria.

Freud talvez sorrisse com cinismo ao reconhecer a operação. Em O mal-estar na civilização, mostrou que a angústia não é acidente, mas o preço de existir em sociedade. Kierkegaard, por sua vez, chamou a angústia de “vertigem da liberdade” — não defeito, mas a própria possibilidade de escolha. Contudo, no mercado atual, essa angústia é tratada como ruído a ser silenciado. Transformada em produto, passa a circular em formas adaptáveis: cursos de filosofia “em cápsulas”, palestras de autoconhecimento e diagnósticos que prometem alívio identitário.

Eis o paradoxo: quando a angústia se torna mercadoria, ela não desaparece; apenas se torna mais rentável. André Green falaria de um “narcisismo de morte”: o gozo mórbido em neutralizar a crítica, em preferir a anestesia à ferida aberta. Becker lembraria que a negação da morte é o motor de quase todas as nossas construções. Se antes criávamos religiões para camuflar o fim, hoje criamos serviços por assinatura e slogans motivacionais. A promessa é sempre a mesma: domesticar o vazio.

Mas não se trata apenas de discurso cultural. O impacto é material e psicossocial. Nas clínicas psiquiátricas e nos consultórios, a angústia recebe nomes técnicos: transtorno de ansiedade, depressão, burnout. O diagnóstico, paradoxalmente, oferece conforto. Ao nomear a dor, dá ao sujeito uma identidade. Mas esse alívio é comprado com a moeda da mercantilização: o sofrimento se converte em protocolo, em receita, em mercado farmacológico. O sujeito deixa de ser apenas angustiado e passa a ser “cliente”.

Zuboff, em A Era do Capitalismo de Vigilância, amplia esse diagnóstico. Se a burguesia comprava títulos e a clínica vende diagnósticos, o capitalismo digital compra e vende a própria experiência subjetiva. Cada clique, cada silêncio, cada insônia noturna se torna dado comportamental, matéria-prima para algoritmos de previsão. A angústia, aqui, não apenas se torna mercadoria, mas também dado minerado — antecipado, monetizado, devolvido ao sujeito em forma de publicidade personalizada.

Bauman, em sua “modernidade líquida”, já apontava a lógica da fluidez: tudo o que é sólido vira descartável. A filosofia, nesse contexto, não escapa. Em vez de enfrentar a angústia, prefere-se transformá-la em “conteúdo de bolso”. O efeito prático é devastador: jovens adultos da classe média baixa, sobrecarregados pelo cansaço do trabalho precário e pela ansiedade digital, consomem filosofia como quem consome energético. O efeito passa rápido, mas a demanda volta, sustentando o ciclo da mercadoria.

E o mais cruel: esse movimento não é uma falha do sistema, mas seu motor. Marx já havia apontado que o capitalismo se alimenta da contradição — da exploração, da falta, da desigualdade. O que se atualiza agora, em versão high-tech, é a apropriação daquilo que parecia impossível mercantilizar: a angústia, o vazio, a própria experiência da finitude.

Se antes o sujeito buscava alívio em religiões, hoje busca em diagnósticos e em “filosofias rápidas”. Se antes a burguesia comprava títulos para preencher o buraco da origem, hoje compramos identidades digitais, cursos instantâneos e diagnósticos clínicos para legitimar nossa existência. A lógica é a mesma: transformar o insuportável em mercadoria.

Cioran, em sua escrita ácida, já dizia que a filosofia é apenas uma forma elegante de gerir a náusea. O capitalismo entendeu a lição, mas a empacotou para vender: gerir a náusea virou mercado. Byung-Chul Han acrescentaria que vivemos no “cansaço da positividade”: a pressão para estar sempre otimista, produtivo, performando sentido, mesmo quando o vazio nos consome.

No fim, a mercantilização da filosofia, dos diagnósticos, dos títulos e até da própria angústia não resolve nada. Apenas reafirma a tese incômoda: o capitalismo se alimenta do que falta. Ele não elimina o vazio; ele o reproduz, em série, transformando-o em dado, mercadoria e identidade.

O que sobra? Talvez apenas a ironia de perceber que o mercado nunca quis nos libertar da angústia — apenas lucrar com ela.


REFERÊNCIAS:

BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

BECKER, Ernest. A negação da morte. Rio de Janeiro: Record, 1995.

CIORAN, Emil. Breviário de decomposição. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

GREEN, André. Narcisismo de vida, narcisismo de morte. São Paulo: Escuta, 1988.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2017.

PONDÉ, Luiz Felipe. A mercantilização da filosofia (e derivados) é um processo sem volta. Folha de S. Paulo, 18 ago. 2025. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2025/08/a-mercantilizacao-da-filosofia-e-derivados-e-um-processo-sem-volta.shtml#webview=1. Acesso em: 19 ago. 2025.

ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.


NOTA DO AUTOR:

Este texto integra a estética do projeto Mais Perto da Ignorância. Não há promessas de cura nem de sentido, apenas o diagnóstico frio de um processo histórico: o capitalismo sempre encontrou na falta sua mercadoria mais rentável. Hoje, vende-se até a angústia. A ironia é constatar que, enquanto buscamos consolo, alimentamos o mesmo sistema que transforma o vazio em negócio.


PALAVRAS-CHAVE

mercantilização, filosofia, angústia, capitalismo de vigilância, Freud, Kierkegaard, Zuboff, Bauman, clínica, diagnóstico


Link original:
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2025/08/a-mercantilizacao-da-filosofia-e-derivados-e-um-processo-sem-volta.shtml#webview=1


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