Avançar para o conteúdo principal

Discurso - 1- Patologia Social das Não-Coisas: Ortega y Gasset, Lacan e Byung-Chul Han

Patologia Social das Não-Coisas: Ortega y Gasset, Lacan e Byung-Chul Han


Resumo

Este artigo propõe uma leitura crítica daquilo que Byung-Chul Han chama de não-coisas, articulando-as à noção de especialista e homem-massa em Ortega y Gasset e ao conceito lacaniano de desejo do Outro. Busca-se compreender como discursos de autoridade — frequentemente desvinculados da experiência material ou da “coisa” — produzem um tipo de patologização social, em que a identidade se organiza não em torno do real, mas de representações performativas legitimadas como saberes ou especialismos. Ao revisitar a crítica freudiana da cultura e sua continuidade em Lacan, argumenta-se que a ordem digital atual transforma informação em critério de verdade e autoridade, favorecendo a emergência de uma normatividade da aparência. A análise inclui também a realidade brasileira, marcada por déficits educacionais e analfabetismo funcional, terreno fértil para a prevalência das não-coisas.

Palavras-chave: Patologia social; Não-coisas; Especialismo; Lacan; Ortega y Gasset; Byung-Chul Han; Educação; Alienação digital.


1. Introdução

O mundo contemporâneo encontra-se cada vez mais povoado por “não-coisas”, conceito elaborado por Byung-Chul Han (2022) para designar a substituição da experiência tangível pela informação. Fotografias digitais substituem álbuns em papel; posts efêmeros substituem narrativas duradouras; índices e métricas tomam o lugar da memória e da presença. O que está em jogo não é apenas uma mudança de suporte técnico, mas uma mutação na forma de constituir a realidade, a identidade e a autoridade.

Essa mutação não é neutra. Ao contrário, configura-se como patologia social: uma crença coletiva em representações informacionais que se impõem como se fossem portadoras de verdade. Para explorar esse deslocamento, recorreremos a três eixos teóricos: (i) Ortega y Gasset e sua crítica ao especialismo como barbárie da modernidade; (ii) Lacan, para quem o desejo do homem é o desejo do Outro, estruturado pela alteridade discursiva; e (iii) Han, que mostra como a infosfera dissolve a coisa em pura informação. Acrescentaremos também Freud, Bauman e Zuboff, ampliando o horizonte crítico e conectando o debate à realidade educacional brasileira.


2. Ortega y Gasset e a Barbárie do Especialismo

Em A Rebelião das Massas (1930), Ortega y Gasset diagnostica o surgimento do especialista moderno: alguém que sabe muito em um campo restrito, mas permanece ignorante no resto. Esse “sábio ignorante” não reconhece seus limites e, tomado por petulância, opina sobre política, ética e cultura sem contato com a totalidade da coisa.

Esse diagnóstico antecipa a condição contemporânea em que “especialistas midiáticos” ou autoridades autoatribuídas se tornam porta-vozes de discursos desvinculados da experiência material. Sua legitimidade não repousa no real, mas no efeito discursivo produzido: citações, aparições midiáticas, métricas de engajamento. Ortega ilumina aqui um traço essencial da patologia social da autoridade: confundir prestígio performativo com saber efetivo.


3. Lacan: o Desejo do Homem é o Desejo do Outro

Para Lacan, o desejo humano é sempre mediado pela alteridade: “o desejo do homem é o desejo do Outro”. Isso significa que o sujeito não deseja objetos em si, mas aquilo que é reconhecido como desejável na cena social.

O discurso do especialista, mesmo quando desconectado da coisa, funciona como significante-mestre que organiza o campo do desejável. Assim, selfies, métricas e posts adquirem valor identitário não por remeterem a experiências vividas, mas por carregarem a chancela do Outro. O gozo não reside na coisa, mas em parecer reconhecido.

Essa dinâmica revela a dimensão patológica: o desejo é capturado pela performatividade discursiva. O sujeito goza em ser aquilo que o Outro espera, mesmo que divorciado da experiência material.


4. Byung-Chul Han: a Ordem Digital e o Fim da Coisa

Em Não-Coisas (2021), Han afirma que a era digital “defacticiza a existência humana”. A fotografia analógica era uma “coisa do coração”, vinculada à memória material e à aura do referente. Já a selfie digital é pura informação: sem referente, sem presença, sem duração.

Se “ser é informação”, como afirma Han, então quem controla os fluxos informacionais controla a própria legitimidade do real. O especialista orteguiano encontra no ambiente digital o terreno perfeito para expandir sua autoridade sem referente, apoiando-se apenas no efeito de visibilidade.


5. Freud, Cultura e Mal-Estar na Era Digital

Freud, em O Mal-Estar na Civilização (1930), advertia sobre o preço psíquico do convívio social: renúncias pulsionais em troca da vida em comum. Na era digital, essa renúncia é substituída por captura: o sujeito não apenas abdica, mas goza em parecer aquilo que o Outro valida.

O mal-estar freudiano ganha contornos inéditos: não se trata apenas da tensão entre pulsão e cultura, mas da compulsão em exibir-se e ser reconhecido. O não-objeto digital torna-se novo fetiche, alimentando um circuito de repetição vazio.


6. Bauman e Zuboff: Liquidez e Vigilância

Bauman (2001) descreve a modernidade líquida como um regime de vínculos frágeis, identidades descartáveis e constante mutabilidade. O digital potencializa essa liquidez: relações, memórias e identidades são continuamente substituídas por versões atualizadas.

Zuboff (2019), por sua vez, expõe o “capitalismo de vigilância”: cada interação gera dados, cada dado vira mercadoria. A normatividade da aparência é aqui explicitamente econômica: ser informação é ser monetizável.


7. A Patologia Social das Não-Coisas no Brasil

No Brasil, essa patologia adquire contornos próprios. O Indicador de Alfabetismo Funcional (INAF) mostra que cerca de 30% da população adulta enfrenta dificuldades para compreender textos mais complexos. O déficit estrutural na leitura crítica cria terreno fértil para a hegemonia das não-coisas digitais: fragmentos, slogans e imagens substituem reflexão.

A escola, em vez de contrapor-se a essa lógica, frequentemente reproduz o mesmo padrão: notas, rankings e índices substituem formação crítica. O estudante se torna um “homem-massa escolarizado”: preparado para exibir certificações, mas desprovido de contato profundo com a materialidade do saber.

Assim, a infosfera não apenas reflete a alienação, mas a intensifica sobre uma base já marcada por desigualdade educacional.


8. Definição: Patologia Social das Não-Coisas

Podemos então definir a patologia social das não-coisas como uma configuração histórica em que:

1. Autoridade sem referente (Ortega): o especialista impõe sua fala como verdade mesmo afastado da coisa.


2. Desejo capturado (Lacan): o sujeito goza em ser reconhecido nas não-coisas, não em viver experiências reais.


3. Informação sem presença (Han): a aura, a memória e a duração cedem lugar ao fluxo efêmero.


4. Gozo da performance (Freud): o mal-estar cultural se converte em compulsão pela exibição.


5. Economia da aparência (Bauman e Zuboff): ser informação é ser mercadoria.


9. Conclusão

A convergência entre Ortega y Gasset, Lacan, Han, Freud, Bauman e Zuboff permite compreender as não-coisas não como fenômenos isolados, mas como patologia social totalizante. O especialista orteguiano encontra palco digital ilimitado; o sujeito lacaniano submete seu desejo à validação do Outro; Freud alerta para o mal-estar que agora se transforma em compulsão performativa; Bauman descreve a liquidez que dissolve vínculos; Zuboff mostra como a vigilância transforma cada gesto em dado.

No Brasil, essa configuração é agravada pela fragilidade educacional, que torna a sociedade ainda mais vulnerável ao domínio das não-coisas. A normatividade da aparência substitui a permanência, e a informação sem referente torna-se critério de verdade.

Não se trata de um diagnóstico moralista, mas de uma crítica à forma como a vida social contemporânea se organiza: a substituição da coisa pela não-coisa, da verdade pela efetividade, do vínculo pela performance. Vivemos numa época em que ser é informação — e onde a memória, a autoridade e a própria identidade se dissolvem no fluxo ininterrupto das não-coisas.


Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Obras Completas, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996 [1930].

HAN, Byung-Chul. Não-Coisas: Reviravoltas do Mundo da Vida. Petrópolis: Vozes, 2022.

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. São Paulo: Martins Fontes, 2007 [1930].

ZUBOFF, Shoshana. The Age of Surveillance Capitalism. Nova York: PublicAffairs, 2019.


Notas do Autor

José Antônio Lucindo da Silva é psicólogo clínico (CRP 06/172551), criador do projeto Mais Perto da Ignorância (blog, podcast, YouTube, Spotify) e pensador independente. Sua produção não tem pretensão de verdade, mas de provocar atenção e reflexão sobre as estruturas sociais e psíquicas que moldam a vida contemporânea. O objetivo não é prescrever comportamentos, mas tensionar discursos e expor paradoxos.


Palavras-chave

Patologia social; Não-coisas; Especialismo; Lacan; Ortega y Gasset; Byung-Chul Han; Educação; Alienação digital.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade

A Técnica, a Exclusão e o Eu: Reflexões Sobre a Alienação Digital e a Identidade na Contemporaneidade Assista o vídeo em nosso canal no YouTube Introdução A cada dia me questiono mais sobre a relação entre a tecnologia e a construção da identidade. Se antes o trabalho era um elemento fundamental na compreensão da realidade, como Freud argumentava, hoje vejo que esse vínculo está se desfazendo diante da ascensão da inteligência artificial e das redes discursivas. A materialidade da experiência é gradualmente substituída por discursos digitais, onde a identidade do sujeito se molda a partir de impulsos momentâneos amplificados por algoritmos. Bauman (1991), ao analisar a modernidade e o Holocausto, mostrou como a racionalidade técnica foi usada para organizar processos de exclusão em grande escala. Hoje, percebo que essa exclusão não ocorre mais por burocracias formais, mas pela lógica de filtragem algorítmica, que seleciona quem merece existir dentro da esfera pública digita...

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital

A Ilusão do Home Office: Uma Crítica Irônica à Utopia Digital Resumo Neste artigo, apresento uma análise crítica e irônica sobre a idealização do home office no contexto atual. Argumento que, embora o trabalho remoto seja promovido como a solução ideal para o equilíbrio entre vida pessoal e profissional, ele esconde armadilhas significativas. Além disso, com o avanço da inteligência artificial (IA), muitas das funções desempenhadas em home office correm o risco de serem substituídas por máquinas, tornando essa modalidade de trabalho uma utopia efêmera. Este texto foi elaborado com o auxílio de uma ferramenta de IA, demonstrando que, embora úteis, essas tecnologias não substituem a experiência humana enraizada na materialidade do trabalho físico. Introdução Ah, o home office! Aquela maravilha moderna que nos permite trabalhar de pijama, cercados pelo conforto do lar, enquanto equilibramos uma xícara de café em uma mão e o relatório trimestral na outra. Quem poderia imaginar ...

ANÁLISE DOS FILMES "MATRIX" SOB A PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA CONTEMPORÂNEA

ANÁLISE DOS FILMES "MATRIX" SOB A PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA CONTEMPORÂNEA Resumo Este artigo apresenta uma análise dos filmes da série "Matrix" à luz da psicologia contemporânea, explorando temas como identidade, realidade e a influência da tecnologia na experiência humana. Através de uma abordagem teórica fundamentada em conceitos psicológicos, busca-se compreender como a narrativa cinematográfica reflete e dialoga com questões existenciais e comportamentais da sociedade atual. Palavras-chave: Matrix, psicologia contemporânea, identidade, realidade, tecnologia. 1. Introdução A trilogia "Matrix", iniciada em 1999 pelas irmãs Wachowski, revolucionou o cinema de ficção científica ao abordar questões profundas sobre a natureza da realidade e da identidade humana. Como psicólogo, percebo que esses filmes oferecem um rico material para reflexão sobre temas centrais da psicologia contemporânea, especialmente no que tange à construção do self e à infl...